Fator previdenciário, período básico de cálculo e salário-maternidade: a decisão do STF na ADI 2.110 e a insegurança jurídica1

Em 21 de março de 2024, o STF concluiu o julgamento da ADI 2.110, ajuizada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), PDT (Partido Democrático Trabalhista), PSB (Partido Socialista Brasileiro) e PCdoB (Partido Comunista do Brasil).

Luiz Alberto dos Santos*

A ADI 2.110, foi ajuizada em 1º dezembro de 1999, ou seja, apenas 5 dias após a sanção da Lei 9.876, de 26 de novembro de 1999.

stf composicao vida toda
Composição do STF, em 2024: em pé, da esquerda para direita, Flávio Dino, André Mendonca, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Nunes Marques, Cristiano Zanin e Paulo Gonet. Sentados: Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Roberto Barroso, Carmén Lucia e Luiz Fux | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Trata-se da lei que instituiu o “fator previdenciário” e ampliou o período básico de cálculo dos benefícios previdenciários, visto que a EC (Emenda à Constituição) 20, de 1998, suprimiu do texto constitucional, a previsão de que as aposentadorias seriam calculadas com base nos últimos 36 salários de contribuição.

Leia também:
STF derruba Revisão da Vida Toda ao validar lei sobre regra de transição previdenciária

Com a nova lei, 2 regras foram estabelecidas: uma, de caráter geral e permanente.

No art. 29, II da Lei 8.213, de 1991, foi previsto que, para os benefícios de aposentadoria por idade e tempo de contribuição, o salário de benefício consistiria na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo, multiplicada pelo fator previdenciário.

Já o 3º da lei, fixou a regra de aplicação para os segurados filiados até 28.11.1999. Para esses, a regra era de que no cálculo do salário de benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários de contribuição, correspondentes a, no mínimo, 80% de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994.

A delimitação de data a partir da qual seriam considerados os salários de contribuição, assim, revelava-se anti-isonômica e poderia levar a resultados diferenciados. Em razão dessa antinomia, o STF, no exame do Recurso Extraordinário 1.276.977, com repercussão geral, e julgado em 21.12.2022 — há pouco mais de 15 meses, portanto — adotou a tese no Tema 1.102 — de que o segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876, de 26 de novembro de 1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais introduzidas pela EC 103/19, que tornou a regra transitória definitiva, tem o direito de optar pela regra definitiva, acaso esta lhe seja mais favorável.”

Regra mais benéfica
Nenhum reparo há que se fazer a essa decisão, pois essa — diante de 2 soluções possíveis — reconheceu o direito do segurado à regra mais benéfica, pois, se, para os antigos segurados, que até então teriam seus benefícios calculados com base nos últimos 36 salários, se previa a aplicação da regra com base nos salários a partir de julho de 1994, seria permitido, para os novos, usar os salários de toda a vida ativa e contributiva.

Assim, o que o STF decidiu foi que, tanto para novos quanto antigos segurados, cujos direitos foram adquiridos até novembro de 2019, seria possível a aplicação da regra geral, sem prejuízo da nova regra, se mais benéfica.

Essa sistemática tem sido adotada em todas as “reformas previdenciárias”, desde a EC 20/98. A regra nova e a regra “de transição”, são aplicadas a todos, cabendo ao beneficiário optar pela que mais lhe seja benéfica.

Ocorre que, numa guinada jurisprudencial, o STF, ao apreciar a impugnação da constitucionalidade da Lei 9.876, como um todo, e notadamente da elevação do período básico de cálculo por lei ordinária, em razão da ofensa ao princípio da vedação do retrocesso social que isso representaria, acabou por decidir que o art. 3º, que fixa a regra para os antigos segurados, deve ser aplicado a todos os casos por ele alcançados.

Decisão da “revisão da vida toda”
Na sessão de 21.03.2024, ao concluir o exame do tema — com enorme atraso, ressalte-se — a Corte adotou o entendimento de que a Lei 9.876, apesar de tudo o quanto argumentado, é constitucional, quanto ao aumento do período básico de cálculo das aposentadorias, assim como é constitucional o “fator previdenciário”, que reduz (ou aumenta, em casos excepcionais) o benefício com base na expectativa de sobrevida do segurado e tempo de contribuição e idade, e considerou que o art. 3º da Lei 9.876/1999 tem “natureza cogente, não tendo o segurado o direito de opção por critério diverso”.

Nesse ponto, restaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça, Edson Fachin e Cármen Lúcia, e foi fixada a seguinte tese de julgamento: “A declaração de constitucionalidade do art. 3º da Lei 9.876/99 impõe que o dispositivo legal seja observado de forma cogente pelos demais órgãos do Poder Judiciário e pela administração pública, em sua interpretação textual, que não permite exceção.

O segurado do INSS que se enquadre no dispositivo não pode optar pela regra definitiva prevista no artigo 29, incisos I e II, da Lei 8.213/91, independentemente de lhe ser mais favorável”.

Fruição de salário-maternidade
A Corte, porém, acatou a inconstitucionalidade da exigência de carência para a fruição (usufruto de vantagem) de salário-maternidade, prevista no art. 25, inc. III, da Lei 8.213/91, na redação dada pelo art. 2º da Lei 9.876/99. Nos termos dessa norma, passou a ser exigido período mínimo de contribuições correspondente a 10 meses antes do início do gozo do benefício, para que as seguradas contribuintes individuais e trabalhadoras rurais em regime de economia familiar, qualificadas como seguradas especiais no inciso VII do art. 11 da Lei 8.213/91, pudessem fazer jus ao salário-maternidade.

Até então, assegurava-se às seguradas o direito ao salário-maternidade independentemente de carência, em observância ao art. 7º, XVIII da CF, que garante às trabalhadoras urbanas e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, o direito à licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário. E o art. 39 da Lei 8.213, no parágrafo único, acrescentado pela Lei 8.861, de 25 de março de 1994, garantiu à segurada especial a concessão do salário-maternidade, desde que comprove o exercício da atividade rural nos 12 meses anteriores ao do início do benefício.

Nesse ponto, portanto, o STF reconheceu quebra de isonomia, e afastou a exigência da carência.

Mudança de orientação em relação à “vida toda”
Todavia, é grave a mudança de orientação jurisprudencial quanto ao cálculo do benefício pela “vida toda”.

Em seu voto, o ministro Edson Fachin, embora não declarasse a inconstitucionalidade das regras fixadas pelo art. 29 da Lei 8.213, e pelo art. 3º da Lei 9.876, considerava que esse julgamento não prejudicaria o decidido no Tema 1.102, da Repercussão Geral. Assim, permaneceria garantido o direito à opção pela situação mais vantajosa. Embora esse entendimento tenha sido acompanhado pela ministra Carmen Lucia e pelos ministros Alexandre de Moraes e André Mendonça, o entendimento que prevaleceu, a partir do voto do ministro Cristiano Zanin, representa reviravolta incompreensível e com grande impacto social, mas prejudicial ao direito dos segurados.

Estamos falando, é claro, de algo que retroage a 1999, ou seja, há mais de 24 anos, e que afetaria milhões de situações já constituídas: benefícios que, nesse período, foram concedidos com base no referido art. 3º. Quando apreciou o Tema 1.102, ao final de 2022, o STF já tinha esse elemento a considerar. E estima-se que os impactos financeiros do cálculo “pela vida toda” poderiam chegar a R$ 480 bilhões, pois benefícios já concedidos precisariam ser recalculados e, ademais, muitas das ações judiciais que aguardavam o desfecho do caso teriam efeitos retroativos.

Ao decidir contra a própria jurisprudência, e ultra petita, o STF mostrou-se sensível aos argumentos fiscais, mais do que jurídicos, e consolidou retrocesso social de amplas repercussões, abrindo, inclusive, caminho para convalidar outras tantas medidas com o mesmo sentido, concretizadas na EC 103, de 2019 — a “reforma previdenciária” de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes.

Desconfiança de toda a sociedade
É preocupante ver que o STF, mudando de entendimento sem que haja fundamentação jurídica sólida para tanto, e em curto prazo de tempo, contribui para o seu descrédito, e aumenta a desconfiança de toda a sociedade sobre a atuação do Poder Judiciário.

A segurança jurídica, nesse caso, resta duplamente abalada: primeiro, pela demora no julgamento, visto que a ADI 2.110 foi ajuizada em dezembro de 1999; segundo, pela mudança, despropositada e sem fundamento, do entendimento que a própria Corte, sob o voto do ministro Alexandre de Moraes, adotou há apenas 15 meses.

Cabe recurso à decisão do STF
Ao adotar, na ADI 2.110, entendimento que não se refere ao pedido pelos autores, contrariou, gravemente, o disposto nos art. 141 e 492 do Novo Código de Processo Civil, segundo os quais, o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas, cujo respeito à lei exige iniciativa da parte, é vetado ou vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida.

Pela relevância e complexidade do tema, a ADI 2.110 deveria ter sido debatida publicamente, em sessão presencial, mas o julgamento ocorreu no Plenário Virtual do STF. Esse é outro problema a ser analisado: se, no Congresso Nacional, certas matérias não podem ser decidas sem o crivo do plenário das 2 casas, também temas dessa natureza não poderiam ser deliberados sem o exame e debate pelo plenário do STF, em vista do interesse público envolvido.

Cabe, em nosso entender, o ajuizamento de embargos de declaração (recurso), com efeitos modificativos, posto que há evidente contradição entre o ora decidido e o que foi debatido no Tema 1.102, e o julgamento da ADI 2.110 não aprofundou essa questão.

Trata-se, contudo, de tarefa que caberá aos atuais advogados dos partidos signatários da ação, em prol do que era, desde que ajuizada, o seu objetivo: a preservação de direitos dos segurados do INSS e a vedação do retrocesso social.

(*) Advogado, consultor, mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais
____________________

1 Título original

Nós apoiamos

Nossos parceiros