Organizações Sociais e Fomento: Um erro a ser corrigido
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Luiz Alberto dos Santos*
A Deputada Alice Portugal (PCdoB/BA), protocolizou em 22 de outubro de 2025 na Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados requerimento para a realização de audiência pública para debater as “consequências da aprovação do Projeto de Lei nº 10.720/2018 para as Organizações Sociais Federais de Ciência, Tecnologia e Inovação voltadas para o fomento”.
Trata-se de PL aprovado pelo Senado, de autoria do Senador José Serra, que altera a lei das organizações sociais, fruto da “reforma administrativa” do Governo FHC, e que tenta ajustar à Lei aos princípios constitucionais e assegurar maior transparência e correção à sua atuação, dados, inclusive, os diversos casos de desvio de recursos que ocorreram sob o manto dessas “organizações sociais”.
Há uma contradição entre o pedido da Deputada, que pretende questionar a vedação do PL a que organizações sociais atuem como entes de fomento, gerindo recursos públicos, notadamente na área de ciência e tecnologia, e a sua trajetória de defesa do serviço público.
Ela se revela de forma cristalina quando se examina o histórico jurídico e administrativo do modelo de organizações sociais aplicado ao fomento à ciência, tecnologia e inovação. Ao solicitar audiência pública, a deputada parte da premissa de que o projeto representa ameaça à continuidade de programas estratégicos como o acelerador Sirius, o laboratório de biossegurança máxima, o fomento à inovação industrial, as olimpíadas de matemática, a rede de alta velocidade para 1.600 instituições e as pesquisas oceânicas e amazônicas. Essa narrativa, contudo, inverte a realidade: o modelo atual é que sempre foi ameaça à legalidade, à impessoalidade e à própria eficiência do fomento público.
Quando, em 2013, examinamos a proposta de qualificação da Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial — EMBRAPII — como organização social, tivemos a oportunidade de identificar a inadequação do modelo adotado. A conclusão a que chegamos, então, foi de que a Lei nº 9.637/1998 não contempla a atividade de fomento a atividades econômicas como área passível de delegação a entidade privada sem fins lucrativos. O artigo 1º da lei restringe a qualificação às áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção ambiental, cultura e saúde.
A atividade de fomento — seleção discricionária de beneficiários com recursos públicos escassos, exige observância estrita dos princípios da impessoalidade, moralidade e isonomia — constitui atividade típica de Estado, indelegável a particular. Como definido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI 1.923, é lícito o fomento do Estado a organizações sociais, para que prestem serviços ou executem atividades; mas não alcançou, aí, a transferência às organizações sociais da própria atividade de fomento ao setor privado, papel que é executado por agências estatais de fomento, como o BNDES, FINEP, BRDE e outras. Essa forma de fomento, na forma de incentivos ao setor privado, é prevista como atividade estatal stricto sensu no art. 174 da Constituição, segundo o qual “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Como ensina Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto,
“A atividade estatal de fomento apresenta-se, hoje, como relevante instrumento de intervenção do Estado no domínio econômico, possuindo o Direito Público brasileiro expressivos exemplos práticos. Trata-se de atividade estatal de condicionamento do comportamento dos particulares, essencialmente de incentivo ou apoio a atividades privadas de forma a torná-las mais viáveis, interessantes ou abrangentes.” (in “O fomento como instrumento de intervenção estatal na ordem econômica”. Revista de Direito Público da Economia, ano 8, nº 32, out-dez 2010, p. ? , grifo nosso).
Assim, o poder de aprovar projetos, celebrar contratos e aplicar penalidades a entidade privada que não integra a Administração – como as organizações sociais – cujo conselho de administração inclui representantes empresariais gera risco inevitável de conflito de interesses e captura privada do fomento público.
E, ainda, a Lei nº 11.540/2007 atribuiu à FINEP, de forma expressa e exaustiva, competência para aprovar projetos financiados pelo FNDCT, firmar contratos, acompanhar execução e recuperar recursos. Tal competência não comporta delegação, muito menos a entidade privada.
No caso da EMBRAPII – instituída como organização social – a proposta inicial era constituí-la como empresa pública — à imagem da Embrapa —, precisamente porque só entidade integrante da Administração Pública pode exercer fomento legítimo.
Apesar desse elemento irrefutável, o governo da época optou pela qualificação da EMBRAPII e de outras entidades como organizações sociais, criando precedente perigoso que se espalhou pelo sistema nacional de CT&I.
O PL 10.720/2018 — originário do PLS 427/2017, de autoria do então senador José Serra, e semelhante, no ponto, ao PL 3.618/2021 do senador Paulo Paim, que ainda aguarda votação pelo Senado — vem exatamente corrigir essa distorção histórica.
O projeto incorpora as exigências que o Supremo Tribunal Federal sinalizou na ADI 1.923: procedimento público, objetivo e impessoal para cada qualificação; estudo técnico prévio que demonstre conveniência e oportunidade da publicização; experiência mínima de três anos e excelência acadêmica comprovada da entidade; proibição expressa de participação de potenciais beneficiários no conselho de administração; consulta pública prévia à comunidade afetada; e mecanismos robustos de fiscalização e desqualificação.
Longe de “desfigurar” ou “eliminar” o modelo federal de organizações sociais de CT&I, tanto o PL 10.720 quanto o PL 3.618 resgatam sua legalidade original e impedem que o instituto seja usado como instrumento de burla ao regime jurídico administrativo.
O parecer do senador Alessandro Vieira, apresentado em 2023 na Comissão de Assuntos Sociais do Senado ao PL 3.618/2021, reconheceu que a proposição positivava as exigências do STF e incorporava dispositivos já aprovados pelo Senado no projeto de José Serra — hoje o próprio PL 10.720/2018 que tramita na Câmara.
O receio manifestado pelos cientistas e gestores das atuais OS de fomento não é, portanto, o de que o projeto acabe com programas relevantes — pois estes podem e devem ser mantidos —, mas de que acabe com o privilégio de exercerem atividade estatal indelegável por meio de entidade privada com composição híbrida e controle frouxo. Trata-se de defesa implícita da perpetuação de prática que, indevidamente, passou a atribuir a organizações sociais funções que jamais lhe foram autorizadas.
Com o PL 10.720/2018 pronto para pauta na Comissão de Administração e Serviço Público, o requerimento de audiência pública da Deputada Alice Portugal revela-se não apenas incoerente, mas intempestivo. Serviria apenas para tentar legitimar politicamente o que é juridicamente ilegítimo, adiando a necessária correção que devolverá ao Estado — por meio da FINEP, do BNDES ou de empresas públicas específicas — a função indelegável de fomentar a inovação brasileira com impessoalidade, transparência e eficiência. Os programas estratégicos que hoje preocupam os signatários do requerimento não só sobreviverão, como ganharão mais credibilidade e sustentabilidade quando executados dentro da legalidade republicana.
Luiz Alberto dos Santos
Advogado, Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais, Consultor Legislativo (aposentado) do Senado Federal e ex-Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil/PR (2003-2014) foi um dos autores da ADI 1.923, que questionou no STF o modelo das organizações sociais.
