Aqueles na esquerda que torcem o nariz para as lutas sociais contra o patriarcado e o racismo, classificando-as levianamente como “identitárias”, devem ter se surpreendido de novo. Foi justamente uma das pautas mais caras ao feminismo — o direito ao aborto — que deflagrou uma mudança no ambiente político, na semana que passou. Até quinta-feira, o governo Lula estava tragado por uma espiral que o sugava ao fundo do poço. Cercado por forças que são irmãs, embora distintas — o hipercapitalismo e a ultradireita — contemporizava com seus algozes, ao invés de resistir a eles. Não houve mudança estratégica. Mas naquele dia as ruas assistiram, pela primeira vez desde o início de Lula 3, a manifestações dos movimentos sociais contra proposições de retrocesso que tramitam no Congresso.

Antonio Martins*

antonio martinsO recuo das presidências da Câmara e do Senado foi instantâneo. Agora, é possível que o Projeto de Lei “do Estupro” (PL 1.904) só seja votado após as eleições. Mas por algum motivo alterou-se o ânimo do próprio governo e também sobre outros temas. No sábado, à margem da reunião do G7 na Itália, Lula pronunciou-se claramente, pela primeira vez, contra a quebra dos “pisos constitucionais” que protegem a Saúde e a Educação públicas, ao garantir-lhes parcelas da arrecadação de impostos. Sua atitude forçou os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet a recuarem das declarações seguidas que haviam dado nos dias anteriores, em favor do fim destes mínimos e das garantias aos benefícios previdenciários.

A semana começa muito melhor que a anterior. Mas estas pequenas vitórias não inverteram o quadro geral. O cenário é de pressão da direita sobre o governo e a pauta política. O objetivo de médio prazo da coalizão das 2 direitas é impor derrota humilhante a Lula e à esquerda em outubro — e, em seguida, reduzi-lo a governo sem dentes, impotentes, capaz apenas de caminhar ladeira abaixo até a derrota final em 2026. Há brechas para impedir a sequência deste script.

Aproveitá-las exigirá diálogo em novas condições entre os movimentos sociais e o governo. Ambas as partes terão de fazer concessões. Primeiro passo será rever — por enquanto, parcialmente — o Arcabouço Fiscal adotado sob comando do Ministério da Fazenda em 2023. Se Saúde e Educação forem excluídas do novo “teto de gastos”, surgirão condições muito mais favoráveis para o investimento público, a melhora das condições de vida das maiorias e a reversão do retrocesso produtivo do País. A agenda do País e as perspectivas para outubro se alterarão. Ainda mais importante: terá se constituído horizonte político novo, alternativo aos do fascismo e dos neoliberais. Para alcançar tudo isso, há ruptura necessária. Antes de examiná-la, porém, vale a pena rever em retrospecto e em mais detalhe a mudança de cenário ocorrida nos últimos 7 dias e seus significados.

O inferno do governo começou, dia 10 de junho, quando ficou claro pela enésima vez que não haverá o quê leve os atuais parlamentares a tributar os ricos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu ao Executivo, sem exame, a MP (Medida Provisória) 1.227, editada menos de 1 semana antes, em novo esforço do Ministério da Fazenda para atingir o “déficit zero” custe que custar. A tarefa de Pacheco foi facilitada pela inoportunidade da proposta — o ex-senador Roberto Requião qualificou-a de “desastre político e econômico” e, segundo a jornalista Maria Cristina Fernandes, o próprio Lula pretendia retirá-la.

O dólar disparou no mesmo dia — sob o olhar complacente e os braços cruzados do Banco Central. Os analistas do mercado apressaram-se em falar em crise e a cobrar mais 1 vez, do governo, corte dos investimentos públicos — em especial os que irrigam Saúde e Educação. Ficou nítido, então, segundo efeito nocivo do “Arcabouço Fiscal” e da meta de “déficit zero”. Além de imporem camisa de força ao governo — em especial em tempos de crise social e ambiental —, eles geram discurso fácil e pressões constantes para que Lula invista contra a própria base. O lema de “não quebrar a meta”, alimentado pela própria Fazenda, transforma-se num pretexto para adotar todo tipo de medida – inclusive as que implicam mais desigualdade, pobreza e desamparo.

Entre os 11 e 13 de junho, as pressões avolumaram-se. Nesse último dia, o ápice, os 3 jornais mais influentes do País publicaram, uníssonos, textos editoriais (1 2 3) cujo sentido era: esgotou-se a possibilidade de chegar ao “déficit zero” por meio de arrecadação maior. Agora, é preciso cortar gastos!

Estas mensagens tornaram-se mais fortes ao serem retroalimentadas de dentro do governo. Os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet nada argumentaram, em nenhum momento, contra essas. Ao contrário. Há muitos meses, assessores do primeiro escalão da Fazenda e a própria ministra do Planejamento nutrem a mídia de mercado com balões de ensaio (“estudos em curso”) sobre o fim da obrigação de destinar recursos mínimos à Saúde e Educação; e sobre “desvincular” os benefícios previdenciários do salário mínimo — ou seja, corroer seu valor. Dia 12, esse movimento acentuou-se. Os 2 ministros convocaram entrevista inesperada para anunciar que estavam promovendo “revisão ampla, geral e irrestrita” do gasto público. O caminho fica fácil para os defensores destas propostas. Porque a ideologia de “Estado mínimo” que sustentam é constantemente corroborada pelas intenções dos 2 ministérios em aplicá-las. Sobra para Lula. É ele quem “alimenta as tensões financeiras” ao eximir-se de tomar decisões, como afirmou o editorial da Folha.

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Numa “tormenta dentro da tormenta” para o governo, a grita anti-investimentos públicos foi engrossada, a partir de 12 de junho, por sobressalto na pauta troglodita do Congresso. Há muito, como mostrou a colunista Myriam Leitão, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), cultiva “caixa de horrores”. Está recheada de projetos que atentam contra direitos sociais e que, mais especificamente, ampliam diálogo com o bolsonarismo, sua agenda de hipocrisia moral, e o capitalismo mais devastador. Compõem o estoque propostas como a punição ainda mais draconiana do consumo e comércio de psicoativos, a privatização das praias e… o PL do Estupro. Munido de poder quase absoluto sobre a agenda da Casa que dirige, Lira saca do embornal, de tempos em tempos, o que pode engordar suas ambições políticas.

Foi assim que, em 24 segundos, ele deu urgência ao PL 1.904. Esperava passar por cima de todas as comissões temáticas da Câmara e vê-lo aprovado em plenário em poucos dias. Seria mais 1 passo para selar sua aliança com as bancadas mais reacionárias e pavimentar seu caminho rumo à eleição de sucessor, em janeiro, e à participação com destaque num novo arranjo de poder da ultradireita. Teve o auxílio da passividade das bancadas governistas, em especial a do PT. Ao contrário do que fizeram PCdoB e PSol, o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), sequer exerceu o direito de protestar contra a aprovação da urgência — o que levou Lira a contar em seu favor os votos dos petistas. Além disso, Guimarães afirmou, pouco antes da votação, que essa “não é de interesse” do Executivo. Sem projeto para o País, o governo enfiava a cabeça sob a areia. Ao fazê-lo, permitia que os adversários nadassem de braçadas e ditassem a agenda nacional.

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Há mais de 10 anos, Steve Bannon anunciou que estabelecer consórcio entre as agendas ultracapitalistas e a pauta de costumes ultraconservadora é a estratégia central para o avanço da ultradireita contemporânea. Não é difícil compreender porquê. As pautas da hipocrisia moral, à qual aderem vastos setores sociais ressentidos com a crise da democracia, dão base social às propostas de mercantilização radical da vida, que os capitalistas não podem defender abertamente e a frio. Em contrapartida, os punhos de renda do rentismo conferem alguma legitimidade a ideias que, de outra forma, seriam vistas como anacrônicas e inaceitáveis.

Na semana passada, este consórcio voltou a se formar no Brasil. O ápice da confluência foi a troca de galanteios entre o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Tarcísio acalenta o plano de ocupar o lugar de Bolsonaro, com base numa pauta-Bukele de “segurança” às custas de sangue. Roberto Campos Neto rompeu de forma cabal com o decoro do cargo, ao oferecer-se para ministro da Fazenda, caso o governador eleja-se presidente da República.

Faltou combinar com os russos. O rolo compressor dos conservadores exigia o silêncio dos opositores. Mas a paralisia dos partidos de esquerda não havia contaminado os movimentos sociais. A greve dos professores e técnicos das universidades e institutos federais manteve-se firme, apesar de intervenção desastrada de Lula. Dia 10, os movimentos da Saúde fizeram-se ouvir. Em audiência com técnicos do Ministério da Fazenda, anunciaram que não aceitarão o ataque aos patamares mínimos de recursos para o SUS. Personalidades como o ex-ministro José Gomes Temporão adensaram o caldo, ao qualificarem a eventual quebra do piso como “traição ao projeto político que elegemos”.

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Mas foi nas ruas que a mudança maior se deu. É provável que o deputado Arthur Lira tenha errado o cálculo e forçado a mão demais, ao exigir pressa para o PL do Estupro. Coalizão feminista foi capaz de organizar, da quarta para a quinta, mobilizações em boa parte do País. Sua ação é sinal de que a internet segue em disputa. Milhares de mulheres saíram às ruas dia 13. Dois dias depois, no sábado, manifestação ainda mais numerosa, em São Paulo, mostrou o grande fôlego do movimento.

Mesmo embrionária e articulada em regime de emergência, a iniciativa foi suficiente para fazer o Congresso recuar. Dia 14, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, avisava que na Casa dele, a tramitação do PL 1.904 será lenta, e passará obrigatoriamente pelas comissões temáticas. Na sequência, o próprio Lira contradizia-se, dava vários passos atrás, excluía a possibilidade de apreciação rápida da matéria no plenário e sugeria que não a votará antes das eleições. Seu truco naufragara. Tanto pesquisa informal no site da Câmara quanto monitoramento mais rigoroso das redes sociais mostravam que havia amplas maiorias contra o PL do Estupro entre a opinião pública. Com frequência, a ultradireita late por não poder morder — e a esquerda passa recibo do susto. Dessa vez, graças à mobilização nas ruas, foi diferente.

O governo também esboçou reação. Na Itália, Janja e Lula, antes em silêncio, pronunciaram-se contra o PL 1.904. No sábado, o presidente ampliou a fala e sugeriu, em nova entrevista, que não jogará o Arcabouço Fiscal sobre os mais pobres; que cabe aos empresários encontrar novos caminhos para recompor as finanças públicas; que eles deveriam, além disso, voltar-se contra os juros decretados por Campos Neto no Banco Central. Horas mais tarde, Haddad e Tebet recuavam de suas posições anteriores e colocavam-se em sintonia com o chefe de governo. O titular da Fazenda afirmou que a quebra dos pisos constitucionais é “apenas um dos cenários debatidos”. Sua colega do Planejamento assegurou que o corte de direitos previdenciários “não é uma prioridade” no governo…

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Apesar do recuo temporário, a agenda de retrocessos não se dissipou. Essa já assumiu dinâmica própria. A confluência de interesses que estabelece é poderosa. Recolhida temporariamente, voltará a ganhar tração em poucos dias, movida pelos interesses que reúne em torno das eleições municipais, da renovação das presidências da Câmara e do Senado e, acima de tudo, da disputa já armada em torno da sucessão presidencial, em 2026. Para enfrentá-la, será preciso projeto alternativo.

A ampliação do gasto público é claramente, a esta altura, o principal caminho para resgatar o governo Lula. Diante de o País em crise, acossado pela ultradireita e em tempos de descrédito na democracia e na política, o Estado precisa demonstrar claramente que pode amparar as maiorias.

Esta avenida está bloqueada pelo Arcabouço Fiscal. O governo federal impôs limites a si mesmo. Por isso, João Pedro Stédile lembra que a Reforma Agrária não avança; a fila das aposentadorias perdura; o Minha Casa, Minha Vida avança a passos de tartaruga; o Estado é incapaz de lançar programa de emprego digno garantido; não há perspectivas de implantar o ensino público integral em larga escala; o subfinanciamento do SUS se prolonga; não há plano algum para as periferias; centenas de milhares continuam a habitar as calçadas; as universidades vivem à míngua e o governo oferece aos professores e técnicos grevistas zero por cento de aumento em 2024.

Não há correlação de forças, no momento, para propor o fim do Arcabouço, proposta porque o governo se empenhou e em torno da qual construiu parte de seu discurso. Mas é possível sustentar medida paliativa, que significará enorme mudança: livrar do Arcabouço, e da meta de déficit fiscal zero, a Saúde e a Educação. O argumento é cristalino: não se trata de gastos, como Lula argumentou tantas vezes — mas de investimentos. São essenciais à proteção da vida e à construção de futuro melhor. Não podem estar submetidas à lógica gélida dos contabilistas que não veem outras contas e valores além das colunas de receitas e despesas.

Os orçamentos da Saúde (R$ 231,3 bilhões) e Educação (R$ 108,3 bilhões) para 2024 somam, juntos R$ 340 bilhões. Livrá-los do Arcabouço produzirá 2 efeitos imediatos. O primeiro é evitar que estas 2 atividades essenciais do Estado sigam subfinanciadas e ameaçadas de novos cortes. A providência permitirá, por exemplo, abrir negociações dignas com os professores e técnicos das universidades e recompor os recursos de que estas instituições precisam para investimentos. Também oferecerá à ministra Nísia Trindade sossego para planejar sem sobressaltos a reconstrução da Saúde e seus programas, após os anos de devastação bolsonarista.

O segundo efeito é descomprimir os demais gastos hoje achatados, destinando-lhes R$ 340 bilhões adicionais ao ano. A medida poderia ser acompanhada de decálogo de metas muito concretas, compreensíveis e efetivas, relacionadas à melhora das condições de vida e à reconstrução da infraestrutura e da capacidade produtiva do País e programadas para até 2026. Apenas como exemplo:

1. Retomada da Reforma Agrária e do apoio à Agroecologia;

2. Salário-acidente e salário-doença para os trabalhadores em empresas-plataforma, independentemente de contribuição ao INSS;

3. Vasta aquisição de imóveis em dívida fiscal no centro das metrópoles, reformando-os e destinando-os à moradia popular; e relançamento do Minha Casa, Minha Vida, com a construção de moradias dignas e em regiões dotadas de infraestrutura e transporte e contratação de milhares de operários da construção civil.

4. Programa Nacional de Enfrentamento e Adaptação às Mudanças Climáticas, com recursos para ações preventivas de defesa das populações ameaçadas por inundações e secas;

5. Destinação de recursos relevantes ao programa Nova Indústria Brasil, para que deixe de ser apenas peça de retórica;

6. Início de Plano Nacional de Ferrovias e Metrôs, com início de algumas obras emblemáticas;

7. Renacionalização da Eletrobrás e dos rios e represas brasileiras, com transição para energias limpas realizadas em sintonia com as comunidades camponesas e seus direitos;

8. Reinício da demarcação de terras dos povos originários;

9. Plano nacional de apoio às vítimas de estupros e outras formas de violência sexual; e

10. Plano de salvação das médias pequenas e microempresas, com crédito a juros muito rebaixados e facilidades fiscais.

Não faltarão justificativas políticas e legais para tal programa. Fatos novos exigem que, tal como em 2021, na pandemia, os orçamentos públicos sejam revistos. As mudanças climáticas estão provocando efeitos devastadores, como demonstra a crise no Rio Grande do Sul.

A alta da inflação e a persistência de taxas de juros elevadas em todo o mundo inflacionam o preço da cesta básica e colocam dezenas de milhões de pessoas em condições de insegurança econômica grave. É preciso protegê-las por meio de “Lei de Solidariedade e Reconstrução” a ser submetida pelo Executivo ao Congresso.

Por ser totalmente oposta à captura da riqueza social pelo rentismo e à regressão produtiva vivida pelo Brasil nas últimas 4 décadas, a aprovação de lei com este caráter exigirá disputa no Parlamento e disputa social. Tanto melhor. Nada faz mais falta ao governo Lula hoje que agenda capaz de dialogar com as maiorias, oferecer-lhes outro horizonte político e propor sua mobilização.

“Lei de Solidariedade e Reconstrução” nesses moldes pode ser, até 2026, a bandeira política central do governo. A disputa persistirá, tão aguda quanto hoje. A diferença é que Lula 3 não mais estará acuado, defensivo e sem agenda — mas munido de projeto popular e mobilizador, capaz de opor-se aos do hipercapitalismo e do fascismo. Os fatos da última semana demonstraram de maneira clara: a ação política das maiorias é possível; o passo indispensável é convocá-las.

Agenda nestes moldes exige romper com a recusa à mobilização social, que marca o atual governo desde seu início. A vitória sobre o bolsonarismo, em 2022, exigiu a formação de frente ampla muito heterogênea e mesmo contraditória. Sabia-se desde o início que a correlação de forças, em Lula 3, seria de início adversa. Precisamente por isso, a Presidência não poderia conforma-se com este cenário. Precisaria, ao contrário, empenhar-se desde o início do mandato em alterá-lo. Seu principal instrumento para isso seria dialogar com as maiorias, diretamente ou por meio dos partidos políticos. Não se fez nem uma coisa, nem outra. Aceitou-se a correlação de forças como dado estático. Abriu-se mão de exercer pressão sobre o conservadorismo das instituições. O resultado foi governo com cada vez menor capacidade de pautar a agenda nacional e mesmo de manter a iniciativa política — chegando ao extremo de ser levado às cordas na semana passada.

As multidões o salvaram, provisoriamente. E é possível que esteja aí a última lição da semana que passou. Talvez não se possa confiar apenas ao governo a tarefa de retirar Saúde e Educação do Arcabouço e iniciar a construção de novo horizonte político, à esquerda. As mesmas ruas e movimentos que fizeram Lira e Pacheco recuar terão, de alguma forma, de participar desta construção.

(*) Editor do portal Outras Palavras. Publicado, originalmente, no portal

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