Há alguns meses, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pediu que eu fizesse vídeo sobre o futuro do jornalismo. O convite era intrigante, em especial porque eu, como sabem todos que estão me lendo, não tenho a menor ideia de como será o meu próprio futuro daqui a 5 anos — ainda mais em momento em que as temperaturas batem recorde há mais de 20 dias, adiantando pesadelo que estava marcado para o final da década. Que dirá o futuro do jornalismo.

Natalia Viana*

natalia viana agencia publicaMas confesso que me diverti com a ideia de sair por aí adivinhando futuros e achei por bem começar, claro, perguntando ao ChatGPT qual seria o título de palestra sobre o futuro do jornalismo. O robozinho me sugeriu o seguinte: “A reinvenção do jornalismo: explorando novas tecnologias e modelos de negócios”.

Obviamente não nos interessa, aqui, nem novas tecnologias nem novos modelos de negócios — não é esse meu objetivo numa reflexão mais profunda sobre para onde estamos indo.

E, como tenho pensado sobre a questão da IA (inteligência artificial), achei importante começar por aí. Afinal, quando robôs conseguem inventar títulos e subtítulos de maneira surpreendente — e malandra —, mais do que nunca, pensar o futuro do jornalismo implica olharmos para dentro.

Há algum tempo as tecnologias da informação deixaram de nos trazer esperanças para, em vez disso, criar angústias. É o que acontece com os jornalistas hoje em dia. A nossa redação aqui na Agência Pública, como todas as redações do mundo, tem sido palco de acaloradas discussões sobre se, e como, devemos abraçar a IA. E, por outro lado, a dúvida sincera sobre o que vai sobrar do jornalismo que entendemos hoje depois da popularização das ferramentas de IA.

Minha resposta tem sido: muito pouco — e por nossa própria culpa.

Nos últimos anos, a internet se plataformizou. O que isso significa? Que poucas corporações conseguiram abocanhar 1 pedaço tão grande do mercado on-line, que transformaram a internet numa praça pública controlada por um punhado de empresas. Você sabe bem quais são essas: Google, Facebook/Meta, Amazon, Twitter, TikTok hoje são verdadeiros atravessadores de tudo o que é falado entre seres humanos.

Como a relação é mediada pelas plataformas, nós, jornalistas, passamos a adotar modos de escrever, de elencar conteúdos, de mostrar imagens que respondem às demandas das plataformas. Aprendemos avidamente a palavrinha mágica, SEO (Search Engine Optimization), para deixar nosso conteúdo mais quadrado, mais curto, mais detectável por robôs.

Passamos a deixar de lado o texto autoral, a delícia da descoberta, a inventividade, a explicação empática, a alegria do texto bem escrito para trabalhar para robôs. Perdemos a conexão com nosso público. E seguimos sem ouvir nossa audiência, com ligação que cada vez é mais frágil, mais mediada e menos humana.

Este eu acho que tem sido o maior erro estrutural do jornalismo nos últimos anos: entregar-se aos robôs e deixar de lado o que é essencialmente o nosso trabalho — contar histórias.

E temos sempre que lembrar que os algoritmos, esses robôs que hoje controlam as comunicações humanas, não são neutros, mas são máquinas de prender a atenção e fazer dinheiro por meio do ódio, da raiva etc.

Assim, nos acostumamos a trabalhar para robôs, modificando o nosso jornalismo ao que exigem os algoritmos, que, insaciáveis, hoje em dia querem mandar não só no título, mas no tema, nas fotos para rodar em redes sociais e até no tamanho dos parágrafos.

E porque nos tornamos — como cordeirinhos — escravos dos robôs, que, em troca, não nos dão nenhuma previsibilidade, a maneira mais óbvia de usarmos a IA será empregá-la em tudo o que somos obrigadas a entregar para satisfazer a sua fome. Ou seja: colocar o ChatGPT, Bard e qual mais seja para fazer resumos, tags, títulos em SEO, mil versões de tweets ou posts para redes sociais. Deixar os robôs trabalhando para robôs. E nos livrarmos de uma vez disso.

Será preciso nos livrarmos dessas tarefas repetitivas para redescobrirmos, afinal, o que faz do nosso jornalismo humano, demasiado humano.

O impacto da IA terá que ser necessariamente o barateamento de tudo o que é óbvio — como o ChatGPT prever que o futuro do jornalismo está no passado, naquilo que nós já fizemos.

Num mundo em que robôs entregam o que já foi escrito, é a criatividade humana, a voz única, a originalidade na ideia e no texto, que terá valor. É aquilo que robô nenhum é capaz de imaginar.

Estamos entrando numa era em que o texto autoral, o olhar único do repórter, a escuta ativa e curiosa do que o público tem a dizer serão os melhores guias para as redações. Precisamos buscar o que sempre fez do ser humano ser que constrói, conta e aprende com as histórias. Temos que relembrar porque, 5 mil anos depois de os primeiros humanos terem desenvolvido a linguagem, nós ainda somos arrebatados ao escutar uma boa narrativa ao redor de uma fogueira ou na mesa de bar.

Como enxergamos ou queremos enxergar o mundo? Como nós, jornalistas, temos errado ao descrever o mundo, ajudando no fenômeno do “news avoidance”, os brasileiros que cada vez mais evitam ler as notícias? Onde temos errado e por que nossa indústria é tão aferrada à nostalgia de um tempo que acabou? Como podemos recontar o mundo, permitir aos mais jovens experimentar a alegria de descobri-lo e criar novas soluções e novos rumos da história? Onde termina a utilidade da tecnologia e quando essa nos escraviza?

Essas são algumas das questões existenciais que vamos enfrentar daqui em diante.

Teremos que ser capazes de ouvir nossa audiência, sim, de engajá-la no nosso fazer jornalístico, mas mais do que isso: temos que ser capazes de entregar um jornalismo tão humano, tão original, que não poderá ser substituído.

A resposta para automatização do espaço público não é produzir mais e mais roboticamente; é produzir menos, é apostar na descoberta das conexões invisíveis que regem a sociedade e nas histórias que explicam de maneira mais profunda por que, afinal, faz sentido essa existência humana, este espaço da Terra que se chama Brasil.

Não existe nem existirá robô que vai ser capaz de responder isso; afinal, a IA será, sempre, adivinhadora de passados. E o jornalismo do futuro está ainda por ser inventado.

(*) Cofundadora e diretora executiva da Agência Pública. É autora e coautora de 5 livros. Publicado originalmente na Agência Pública. Leia+

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