Uma expressão do pensamento brasileiro
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Na trilha de repensar o Brasil republicano que enfrenta o desafio para remover os obstáculos que impedem sua soberania nacional e popular, bem como realizar um regime que até hoje desmerece o sentido de se voltar para a coisa pública, em função da presença de cultura política na qual o povo não merece senão figurar como mero espectador das tratativas dos que detêm o mando no País, é que retomo nesta reflexão essa mesma e reiterada problemática para celebrar a memória de um intelectual que honrou sua condição de jurista e republicano.
Lincoln Penna*
Há 20 anos que o jurista Raymundo Faoro (1924-2003) nos deixou, mas a obra dele permanece tão viva em razão da atualidade das análises em relação ao Brasil e especificamente à República, sobre a qual editou um dos seus livros que se tornou recorrente aos estudiosos de nossa sociedade contemporânea. Refiro-me “A República Inacabada”, cujo conteúdo é bem significativo da situação no qual se encontra o povo.
Muito embora o seu livro “Os Donos do Poder” seja o mais revisitado em função de ter-se transformado em leitura obrigatória para se entender a formação política brasileira, a publicação que mais bem retrata o que tem sido a nossa República, sem dúvida, é demarcada pelo próprio título ao se referir ao regime inconcluso a exigir que o povo o venha proclamá-lo tão logo consiga tomar as rédeas do nosso processo histórico sob os escombros de uma República inacabada, cujo tratamento dado por Faoro é definitivamente a interpretação até hoje a mais instigante.
Faoro não foi apenas um intérprete de Brasil como tantos outros que merecem ser sempre lembrados, mas desempenhou papel importante e destacado nos embates pela democracia brasileira, cujo momento mais emblemático ocorreu por ocasião do arrastado período da transição que liberou as práticas políticas represadas durante a vigência da ditadura militar e empresarial até chegar à adoção plena das liberdades democráticas e a Constituição de 1988. Seja como presidente da OAB Nacional ou cidadão cônscio de seus deveres de se engajar nas lutas contra o arbítrio, sua voz e sua pena deixaram legado que não pode ser obscurecido pelo tempo.
Em “A República Inacabada” há o registro da primazia absoluta do sistema federativo sobre o regime republicano, a ponto de o então deputado e futuro presidente Prudente de Morais ter sustentado a introdução da federalização do império. Esta e outras vozes de representantes dos fazendeiros e grandes proprietários de terra, oriundos do sistema coronelista desdobrado e atualizado nos fenômenos do clientelismo, dentre outros, anteviam o que seria o novo regime que ganharia rápida adesão tão logo os escravocratas perderam suas demandas relativas à indenização após a Abolição da Escravatura.
Imperou, assim, o oportunismo e a conciliação, erva daninha que tem se tornado tão frequentemente presente nas tratativas políticas do andar de cima de nosso pálido edifício social, monitorado que é até hoje pelos herdeiros da Casa Grande. Daí, Faoro descrever a nossa democracia sem povo como fator explicativo para a eterna disputa que se trava acima dos interesses das classes subalternas, costumeiramente usadas para simular falsa sensação de que estamos a cumprir os requisitos inerentes a regime da coisa pública.
Em “Existe um pensamento brasileiro?”, o autor dessas obras de referência sobre Brasil e a falaciosa República lança mão de advertência nada mais significativa de jornalista, que de Londres escrevia para sua gente no Brasil. O seu nome era Hipólito José da Costa e como jornalista criou o Correio Braziliense. Dizia, então, em maio de 1811:
“Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas [a] ninguém aborrece mais do que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más consequências desse modo de reformar; desejamos reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”.
Fica claro o desprezo não apenas pelo processo democrático das tomadas de decisão, mas ressalta o desprezo maior, aquele que prescinde do povo tido e explicitamente dito que se evite sua participação. Tal como os aparentemente liberais como os de hoje têm avaliação absolutamente idêntica, vez que ao povo resta segundo os seus preceitos apenas e tão somente eleger os que supostamente os representa. E esta representação é ditada pelos interesses privatistas, bem distante dos valores e princípios que regem teoricamente a República.
Da mesma forma pode-se dizer em relação ao que Faoro designou de “constitucionalismo ornamental”. Isto em razão da não observância dos artigos constantes de nossa Constituição, como de resto acontecia nas anteriores, que serviam apenas para dar uma cobertura formal a um Estado Democrático de Direito que jamais existiu por inteiro. E exemplo do não cumprimento da Constituição está na questão da terra. No capítulo referente à política agrícola e fundiária e da reforma agrária, logo no artigo 184 é dito:
“Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária…”
Ou seja, quem especula territórios agrários, não o cultiva e impede os despossuídos de terra que não tem alternativa senão fazer valer o que é admitido pela própria Carta Magna da Nação, tem sido vociferantes vozes que tentam impedir a efetivação da mais velhusca das reformas sociais que é o acesso à terra. Está aí, um dos traços bem característicos tanto da República inacabada de Faoro quanto da revolução irrealizada, também objeto de suas sempre vivas observações.
(*) Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Publicado originalmente no portal RED (Rede Estação Democrática).