O Parlamento deve ser uma Casa plural. Sendo o poder representativo por excelência, espera-se que em uma sociedade dividida tenhamos um parlamento dividido, mas que, apesar dessa divisão, possa alcançar consensos que beneficiem a todos.

Renê Braga*

rene brgA divisão, embora natural e esperada, deve ser atenuada pelo papel de liderança intrínseco ao poder de representação que cabe aos parlamentares numa democracia. O Parlamento é a Casa que constrói pontes onde até então só há trincheiras.

Um dos pontos que vem sendo mais discutidos após as Eleições de 2022 é a confiabilidade das urnas eletrônicas e, por via de consequência, do resultado do pleito.

Os questionamentos feitos à urna eleitoral não são novos, tendo motivado inclusive uma Proposta de Emenda à Constituição 135/19, da deputada reeleita Bia Kicis (PSL-DF), apelidada de "PEC do Voto Impresso Auditável".

A deputada, ainda em julho de 2021, dizia que "não adianta o TSE garantir que a urna é segura, porque ela não tem transparência e os auditores já disseram inclusive à Polícia Federal que ela carece de segurança e transparência".

A proposta acabou arquivada em sessão do dia 10/08/2021, mas a derrota da PEC não significou o fim dos questionamentos, do interesse popular sobre a matéria ou das acusações contra a urna eletrônica.

O PL (Partido Liberal), sigla do presidente Jair Bolsonaro e pela qual concorreu à reeleição, chegou a contratar auditoria privada sobre a segurança do sistema de votação, apuração e totalização dos votos pelo TSE (Tributal Superior Eleitoral). No citado documento, o partido dizia ter encontrado atraso na implantação de medidas "mínimas necessárias" à segurança do pleito "com grave impacto nos resultados das eleições de outubro".

A divulgação do documento motivou inclusive nota do TSE que adjetivou as conclusões do documento de "falsas e mentirosas, sem nenhum amparo na realidade, reunindo informações fraudulentas e atentatórias ao Estado Democrático de Direito e ao Poder Judiciário".

Seguindo a linha que já havia sido anunciada e promovida pelo presidente Jair Bolsonaro, após a divulgação do resultado do segundo turno do Pleito à Presidência, diversos foram os questionamentos apresentados às eleições, com inúmeras alegações de fraude eleitoral explodindo por toda a internet.

A situação chegou ao curioso cenário de convite às Forças Armadas para que fosse realizado trabalho de fiscalização do sistema eletrônico de votação.

Ainda mais inusitado, o contexto no qual foi divulgado o resultado desse trabalho. No último dia 7/11/2022 foi publicada nota oficial do Ministério da Defesa que anunciava que o relatório seria entregue ao TSE no dia 9/11/2022.

Na data anunciada, o relatório do Ministério da Defesa foi divulgado por meio do canal oficial da Pasta no aplicativo Telegram "haja vista o amplo interesse público nos resultados desse trabalho".

O TSE, por sua vez, publicou notícia no site oficial anunciando que "o Tribunal Superior Eleitoral recebeu com satisfação o relatório final do Ministério da Defesa, que assim como todas as demais entidades fiscalizadoras, não apontou a existência de nenhuma fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas no processo eleitoral de 2022".

Após as reações ao relatório, nova nota oficial do Ministério da Defesa foi emitida, afirmando que o trabalho "embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022".

A nota ainda indicava ter havido "possível risco à segurança na geração dos programas das urnas eletrônicas", que "houve restrições ao acesso adequado dos técnicos" e que os "testes de funcionalidade das urnas (...) não foram suficientes para afastar possibilidade da influência de um eventual código malicioso".

A mera narrativa da situação, com todas as suas idas e vindas, aponta para a dificuldade em se alcançar consenso sobre o mérito da questão. O contexto aponta para dissenso institucional entre o Poder Judiciário e o Ministério da Defesa potencialmente grave e danoso à harmonia entre os poderes.

Tal dissenso institucional, em escalada progressiva, vem de sequência de ações e reações e é mais um exemplo da divisão social pela qual passa o Brasil, com acentuado partidismo. Nesse ponto, cabe reflexão sobre o papel do Judiciário, principalmente como dentre os poderes instituídos constitucionalmente.

O Judiciário sempre decidirá as questões que lhe são submetidas com base nas técnicas de Direito, o que impõe julgamento com resultado binário. Pelas próprias características da jurisdição, o Poder Judiciário sempre posicionará qualquer questão que lhe seja submetida entre o certo e o errado, o lícito e o ilícito.

No caso em tela, essa característica fez com que o TSE tratesse a questão das urnas como encerrada, mesmo que a pacificação se encontre distante.

Não é essa, no entanto, a característica mais marcante do Poder Legislativo. Conforme mencionado anteriormente, é o Legislativo o espaço para buscar o consenso, para harmonizar a divisão. No Poder Legislativo, o cinza também é cor.

Mesmo que houvesse mobilização política suficiente à aprovação da PEC 135/2019, era sabido que o "voto auditável" não seria realidade no pleito de 2022. Não havia tempo para adaptação dessa magnitude em toda a engrenagem eleitoral e já havia posicionamentos do STF sobre a questão. Todo esse contexto acabou resultando no arquivamento da proposta, como mencionado acima.

A decisão, no entanto, claramente não pacificou a questão. Eram vários os alertas que apontavam para o fato de que os questionamentos sobre a lisura do processo eleitoral retornariam.

Se o consenso quanto à matéria (no caso, a lisura e a integridade do voto eletrônico) não era possível, restava ao Poder Legislativo a busca da pacificação por outra via, sendo natural a escolha da via procedimental.

Um dos papeis mais relevantes do Poder Legislativo é a elaboração de normas que garantam segurança jurídica e estabilidade nas relações sociais e com os demais poderes.

A imposição de regras em contextos conflituosos traz previsibilidade. A imposição de regulações consistentes e transparentes impede que atuações imprevisíveis saiam do controle.

Veja-se o caso da Lei 10.609, de 20 de dezembro de 2002, que dispõe sobre a instituição de equipe de transição pelo candidato eleito para o cargo de presidente da República. A existência de procedimento claro sobre o regime de transição foi talvez o único ponto previsível para o qual apontou o presidente Bolsonaro após ser derrotado nas urnas.

A questão da legitimidade do pleito continuará como fantasma pairando sobre a integridade do processo eleitoral até que solução que atenda a todas as partes seja alcançada. Na mesma linha do regramento ao governo de transição, cabe ao Legislativo enfrentar os questionamentos apresentados regulando como possível o procedimento para que seja dada transparência ao pleito.

Uma abordagem procedimental à questão, prevendo-se regras claras para auditorias, acompanhamento dos procedimentos e até mesmo para apresentação de questionamentos ao resultado do pleito seria abordagem muito mais eficiente do que declarar encerrada a questão.

Não pode se esperar tal abordagem do Poder Judiciário, que tem em suas mãos as ferramentas da jurisdição. Cabe ao Poder Legislativo, o trabalho delicado de construir consensos possíveis onde pairam a desconfiança e as acusações, de modo a buscar a harmonia entre os poderes.

(*) Advogado. Doutor e mestre em Direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Professor do curso de graduação em Direito do Unilavras. Artigo publicado originalmente no portal Conjur

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