ESTIVE NO ATO e andei ao longo de toda sua extensão, indo e vindo, por 2 vezes. Fiquei impressionado. Eram 4 quadras apinhadas de gente. Havia pontos, no quarteirão onde se encontrava o caminhão de som, em que a compactação tornava quase impossível a passagem. Numa apreciação impressionista, arrisco dizer que pouco mais de 2/3 da massa era composta por gente de classe média-média, branca.

Gilberto Maringoni*

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Ex-presidente Jair Bolsonaro em manifestação na Avenida Paulista | Foto: Reprodução

O restante parecia ser de classe média baixa (pobres), com presença significativa de pretos e pardos. Não era protesto de grã-finos dos Jardins. Havia 4 governadores e algumas dezenas de parlamentares no palanque. Tarcísio de Freitas reforçou o policiamento e há notícias de que teriam vindo caravanas do interior e de outros estados. Dinheiro parece não ter faltado.

QUAL A MÉTRICA PARA SE AVALIAR o evento? Há pelo menos 3 essenciais: 1) Saber se havia um público em volume expressivo; 2) O que Bolsonaro pretendia com a iniciativa; e 3) Compará-lo com as possibilidades organizativas da esquerda.

EXAMINEMOS A PRIMEIRA variável. Mesmo que não tenha colocado no asfalto os 700 mil que alguns de seus apoiadores chegaram a alardear — é possível que tenham comparecido pouco menos de 200 mil —, a soma não é desprezível. Acima de tudo, vale a foto aérea de uma Paulista apinhada de gente.

TUDO INDICA QUE BOLSONARO queria dar demonstração de força e retirar as acusações que enfrenta do terreno jurídico — que lhe é desfavorável — e deslocá-las para a seara política, na qual pode obter bom resultado. Cercado de processos, o ex-mandatário está absolutamente correto em buscar as ruas. Possível prisão, assim como foi a de Lula, depende da criação de ambiente político que enfraqueça sua legitimidade e o torne vulnerável aos tribunais.

O petista só foi encarcerado depois de anos de impiedosa campanha midiática, de acusações infundadas por parte da Lava Jato, de opções desastrosas do PT no governo e do golpe de 2016.

O MARIDO DE DONA MICHELLE se fortaleceu na ensolarada tarde paulistana. Passa o recado de que não é carta fora do baralho, mesmo sendo inelegível. Mais do que tudo, mostra que o peso político da extrema-direita brasileira não é pequeno.

SE A META DE MOSTRAR apoio de multidões foi atingida, o segundo objetivo tem poucas chances de se concretizar. Como assinala Valter Pomar, Bolsonaro propõe acordo que livre a cara dele e isso ficou explícito no discurso dele. Antes de entrar no mérito do que o ex-presidente externou ao microfone, é preciso focar brevemente na direção do espetáculo, ou na coreografia de palco.

OS PRINCIPAIS ORADORES foram 3, além de Bolsonaro. Puxando a fila estava Michelle, a demonstrar fidelidade ao marido — ela cancelou viagem aos EUA — e pregar chorumela emotiva, pretensamente religiosa.

Em seguida, tivemos Tarcísio de Freitas, anfitrião e possível herdeiro do espólio político do chefe, a garantir sua retidão de caráter. E, por último, e o mais importante, Silas Malafaia, misto de espertalhão e guru espiritual, para quem Bolsonaro terceirizou a saraivada de ataques ao Supremo, ao TSE, a Lula, ao PT, a Alexandre de Moraes e a quem mais estivesse pela frente. No meio do fraseado, destacou em tom quase apocalíptico: “Jair Messias Bolsonaro é o maior perseguido político da nossa história.

LIMPO O TERRENO, o indigitado ficou livre para tentar caminho sem agressões e baixarias, quase 1 Jairzinho paz e amor. E se revelou tremendamente defensivo e vulnerável. Em 22 minutos de oratória surpreendentemente articulada para os padrões do ex-capitão, ele falou da infância, da vida no Exército, contou da experiência parlamentar, dos feitos na Presidência, atacou o comunismo, a ideologia de gênero, o aborto e listou rosário de lugares-comuns do fascismo pátrio que faz a alegria do eleitorado dele.

Destacou ainda a importância do pleito municipal e negou ter tramado 1 golpe. De cambulhada, aproveitou para insistir no vitimismo: “Levo pancada desde antes das eleições de 2018”.

DEPOIS DA PIEGUICE, vamos ao que interessa: buscar o que chama de conciliação e pacificação. “É passar uma borracha no passado. É buscar maneiras de nós vivermos em paz. É não continuarmos sobressaltados”.

A ARENGA VAI EM FRENTE: “Agora, nós pedimos a todos os 513 deputados e 81 senadores um projeto de anistia para que seja feita justiça em nosso Brasil”. E cita os possíveis beneficiários, “Esses pobres coitados que estavam lá no 8 de janeiro de 2023”. Mas o altruísmo do ás das moticiatas logo revela o verdadeiro objetivo: “Também quero dizer que nós não podemos concordar que um poder tire do palco político quem quer que seja. A não ser que seja por um motivo extremamente justo”.

AQUI O EX-PRESIDENTE MANDA as sutilezas às favas. Sua meta enfim é revelada por inteiro: sair liso — juntamente com o alto comando do golpe — de quase 20 acusações judiciais, transformando o caso em disputa política, apelando ao Congresso — que tem as prerrogativas constitucionais para isso — e não ao STF. O projeto do ato tem, assim, início, meio e fim. Nessa tentativa de mostrar força, é possível que busque realizar manifestações semelhantes em outras capitais.

O COMPORTAMENTO DA MÍDIA, ao longo do dia, foi cauteloso. Mesmo o Fantástico, principal atração dominical da Globo, enquadrou a notícia numa reportagem de 3 minutos, quase ao final do programa, na qual não faltaram menções às acusações que pesam sobre Bolsonaro. Como as corporações de comunicação têm sido atendidas em quase todas as suas demandas com o governo federal — arcabouço fiscal, verbas publicitárias, predomínio de fundações privadas na Educação, não reversão de privatizações e reformas de Temer e Bolsonaro — possivelmente seus dirigentes avaliem não ser esse o momento de romper com a atual gestão.

FINALMENTE, DO PONTO DE VISTA da esquerda, convém não subestimar a força da extrema-direita. Desde a posse de Lula 3, o que se entende genericamente por progressismo não colocou contingente equivalente em praça pública. Apesar da defensiva, Bolsonaro age com competência ao buscar mudar o terreno do enfrentamento da Justiça para o Congresso. É difícil que conquiste a anistia, mas também é pouco provável que seja preso no curto prazo. Há objetivo secundário nessa trama toda: o mais ilustre morador do condomínio Vivendas da Barra tenta coesionar e unificar nacionalmente os aliados com vistas às eleições de outubro.

FALTA UMA ÚLTIMA PEÇA nesse quebra-cabeças. Até aqui não há uma campanha vigorosa da esquerda contra a extrema-direita. Ao contrário: o bolsonarismo está no governo e no Congresso, negociando cargos e prebendas. Sobra soberba, desleixo e falta de rumo nos campos progressistas.

A celebração do 8 de janeiro no Palácio do Planalto se resumiu a 1 convescote destinado a passar o pano geral para o andar de cima do golpe. Seguimos depositando todas as expectativas no Xandão. A esquerda acaba fazendo lawfare com sinal trocado ao bater às portas dos tribunais diante de qualquer controvérsia. Embora Lula tenha subido o tom na política externa, seu comportamento não é acompanhado pela maioria de seu partido ou das agremiações aliadas. Com raras exceções, ministros, senadores e deputados do PT evitam se posicionar nessa questão.

NÃO BASTA RECLAMAR, xingar, fazer piadas, desqualificar, ofender e dirigir vitupérios ao fascismo made in Brazil. É preciso enfrentá-lo politicamente, retirá-lo do governo, assumir o real comando das Forças Armadas e definir melhor quem são aliados e inimigos. Sei que falar é fácil, mas não há outro jeito.

(*) Professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSol ao governo de São Paulo, em 2014. Publicado originalmente no DCM (Diário do Centro do Mundo)

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