O Decreto 9.507/18 amplia a terceirização no serviço público
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A regulamentação da terceirização por meio da Lei 13.429/17, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente que reconheceu a terceirização e a publicação do Decreto completa o marco regulatório de aplicação da terceirização nos âmbitos privado e público.
Luiz Alberto dos Santos*
1. Introdução
O Chefe do Poder Executivo editou, no dia 21 de setembro de 2018, o Decreto 9.507, publicado no Diário Oficial da União em 24.09.2018 que “Dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”.
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A norma adota, como fundamento para a sua validade, o disposto no art. 84, caput, inciso IV e VI, alínea “a”, da Constituição, ou seja, trata-se de decreto simultaneamente expedido no uso do poder regulamentar (e, assim, submetido à lei) e decreto autônomo, editado para “dispor, sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos”, hipótese que, em tese, dispensa a previsão legal expressa.
Contudo, o próprio ato submete sua validade ao disposto no § 7º do art. 10 do Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, e na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 – Lei de Licitações.
Quanto ao § 7º do art. 10 do DEL 200/67, trata-se de norma que assim estabelece:
“§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.”
A norma, em se tratando de lei especial, precede a aplicação da Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, com as alterações promovidas pelas Leis nº 13.429 e 13.467, ambas de 2017. Essas últimas normas têm caráter de lei geral e, assim, não afastam a prevalência da lei específica que é o Decreto-Lei nº 200, de 1967.
Abordaremos, a seguir, a evolução normativa e jurisprudencial da terceirização, em face dessas recentes alterações legais.
2. Aspectos legais da Terceirização
Nos termos das Leis nº 13.429 e 13.467, ambas de 2017, aprovadas no âmbito dos debates da “Reforma Trabalhista”, em um turbulento e multiplamente contestado processo legislativo, foi afastada a aplicação da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, que estabelecia limites à terceirização de mão-de-obra, notadamente em empresas públicas e sociedades de economia mista.
A “Reforma Trabalhista” concretizada pela Lei nº 13.467, de 2017, introduziu na Lei nº 6.019/74 o seguinte art. 4º-A:
“Art. 4o-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
§ 1o A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.
§ 2o Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.”
O novo art. 4º-C, visando assegurar um rol mínimo de direitos aos terceirizados, reitera em seu caput essa possibilidade de ampla terceirização:
“Art. 4o-C. São asseguradas aos empregados da empresa prestadora de serviços a que se refere o art. 4o-A desta Lei, quando e enquanto os serviços, que podem ser de qualquer uma das atividades da contratante, forem executados nas dependências da tomadora, as mesmas condições:
I - relativas a:
a) alimentação garantida aos empregados da contratante, quando oferecida em refeitórios;
b) direito de utilizar os serviços de transporte;
c) atendimento médico ou ambulatorial existente nas dependências da contratante ou local por ela designado;
d) treinamento adequado, fornecido pela contratada, quando a atividade o exigir.
II - sanitárias, de medidas de proteção à saúde e de segurança no trabalho e de instalações adequadas à prestação do serviço.
§ 1o Contratante e contratada poderão estabelecer, se assim entenderem, que os empregados da contratada farão jus a salário equivalente ao pago aos empregados da contratante, além de outros direitos não previstos neste artigo.
§ 2º Nos contratos que impliquem mobilização de empregados da contratada em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) dos empregados da contratante, esta poderá disponibilizar aos empregados da contratada os serviços de alimentação e atendimento ambulatorial em outros locais apropriados e com igual padrão de atendimento, com vistas a manter o pleno funcionamento dos serviços existentes. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Por seu turno, foi também inserido o seguinte art. 5º-A, com destaque para o seu caput e § 1º:
“Art. 5o-A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
§ 1º É vedada à contratante a utilização dos trabalhadores em atividades distintas daquelas que foram objeto do contrato com a empresa prestadora de serviços. (Incluído pela Lei nº 13.429, de 2017)
..........................................”
Assim, nos termos dessa legislação, a contratação de empresas de prestação de serviços passou a poder abranger a totalidade das atividades do contratante, e, inclusive, a sua “atividade principal”, e sem limitação temporal.
A Lei nº 6.019, de 1974, originalmente, introduziu na ordem jurídica pátria a figura de um terceiro rompendo com o binômio empregado x empregador, consagrado pela Consolidação das Leis do Trabalho.
A “Lei do Trabalho Temporário” abriu as portas para essa forma de contratar, firmando uma tipicidade afastada da clássica relação de emprego [1]. Foi instituído o conceito de “locação de mão de obra”, destinado a atender à necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços, situação em que a força de trabalho é apenas colocada à disposição de um terceiro beneficiário que a dirige e administra no exercício de seu poder diretivo, em situação de dupla subordinação.
Contudo, em 1983, a Lei 7.102/83 estendeu para os serviços de vigilância essa forma de contratar atípica, impulsionando a terceirização trabalhista e dando lugar ao surgimento de um mercado de prestadores de serviços, mitigando o regime de emprego.
Nesse contexto, o TST - Tribunal Superior do Trabalho, à míngua de legislação que disciplinasse a terceirização na esfera privada, adotou, em 22 de setembro de 1986, o Enunciado de Súmula 256, que, ressalvando os casos enquadrados na Lei 6.019/74 e os serviços de vigilância, regulamentados pela Lei 7.102/83, definiu pela ilegalidade da contratação de trabalhadores por empresa interposta, deixando claro que o vínculo de emprego se daria com o tomador dos serviços, coibindo, assim, a terceirização.
Esse entendimento, porém, não foi capaz de frear a tendência no sentido da ampliação do emprego da mão de obra terceirizada, revelando situação de enorme complexidade e litigiosidade, tanto mais que, no setor público, vigorava marco legal mais permissivo, estabelecido, então, pelo Decreto Lei 200/67, na forma do citado § 7º do art. 10.
No bojo das pressões oriundas das crises dos anos 1980 e 1990, o Enunciado 256 foi revisto pelo TST em duas ocasiões. Inicialmente, em 1993, em decorrência de solicitação do Ministério Público do Trabalho, sob o argumento de que as regras aplicáveis às empresas estatais deveriam ser equiparadas às da Administração direta, autárquica e fundacional.
O TST, então, em dezembro de 1993, com a adoção da Súmula nº 331, flexibilizou o entendimento a respeito do tema e passou a reconhecer a legalidade de contratação de quaisquer “serviços especializados ligados à atividade meio do tomador”, não apenas pelas empresas estatais, mas por quaisquer entidades privadas.
Depois, em 2000, aprovou nova redação à Súmula 331, incluindo, no inciso IV, a responsabilização subsidiária do Ente Público contratante, sob o entendimento de que, havendo descumprimento pela contratada das obrigações e encargos trabalhistas e previdenciários, deve ser imposta à contratante a responsabilidade (culpa in vigilando), com a decorrente responsabilidade de responder pelas consequências do inadimplemento do contrato.
Esse inciso foi revisitado em face de decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC nº 16, que confirmou a validade do disposto no art. 71, § 1º da Lei nº 8.666, de 29 de junho de 1993, cuja aplicação fora relativizada pela Súmula 331. O STF adotou, então, o entendimento de que a aplicação desse dispositivo, que prevê que “a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento”, não exime a entidade da Administração Pública de observar os princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da moralidade e legalidade administrativa, e, assim, fiscalizar o cumprimento das obrigações pelo contratado, mas essa obrigação não importa afirmar que a Administração possa ser diretamente chamada em juízo para responder por obrigações trabalhistas devidas por empresas por ela contratadas.
Todavia, o STF não declarou a inconstitucionalidade da responsabilidade subsidiária, mas a constitucionalidade do disposto no art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666, de 26 de junho de 1993, visando a afastar duplo prejuízo ao ente público que, apesar de ter cumprido as suas obrigações no contrato administrativo firmado, teria que arcar também com consequências do inadimplemento de obrigações trabalhistas pela contratada.
O tema foi objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 760.931, concluído em 26.04.2017, que decidiu no sentido de que “o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”.
Contudo, o Acórdão desse julgado explicita vários conceitos favoráveis à ampla terceirização na Administração Pública, e, de forma sui generis, discorre sobre as “vantagens” da terceirização no mundo moderno:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. ROSA WEBER
Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX
Julgamento: 26/04/2017 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA COM REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DO TRABALHO. TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SÚMULA 331, IV E V, DO TST. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 71, § 1º, DA LEI Nº 8.666/93. TERCEIRIZAÇÃO COMO MECANISMO ESSENCIAL PARA A PRESERVAÇÃO DE POSTOS DE TRABALHO E ATENDIMENTO DAS DEMANDAS DOS CIDADÃOS. HISTÓRICO CIENTÍFICO. LITERATURA: ECONOMIA E ADMINISTRAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO. RESPEITO ÀS ESCOLHAS LEGÍTIMAS DO LEGISLADOR. PRECEDENTE: ADC 16. EFEITOS VINCULANTES. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO EM CASOS SEMELHANTES. 1. A dicotomia entre “atividade-fim” e “atividade-meio” é imprecisa, artificial e ignora a dinâmica da economia moderna, caracterizada pela especialização e divisão de tarefas com vistas à maior eficiência possível, de modo que frequentemente o produto ou serviço final comercializado por uma entidade comercial é fabricado ou prestado por agente distinto, sendo também comum a mutação constante do objeto social das empresas para atender a necessidades da sociedade, como revelam as mais valiosas empresas do mundo. É que a doutrina no campo econômico é uníssona no sentido de que as “Firmas mudaram o escopo de suas atividades, tipicamente reconcentrando em seus negócios principais e terceirizando muitas das atividades que previamente consideravam como centrais” (ROBERTS, John. The Modern Firm: Organizational Design for Performance and Growth. Oxford: Oxford University Press, 2007). 2. A cisão de atividades entre pessoas jurídicas distintas não revela qualquer intuito fraudulento, consubstanciando estratégia, garantida pelos artigos 1º, IV, e 170 da Constituição brasileira, de configuração das empresas, incorporada à Administração Pública por imperativo de eficiência (art. 37, caput, CRFB), para fazer frente às exigências dos consumidores e cidadãos em geral, justamente porque a perda de eficiência representa ameaça à sobrevivência da empresa e ao emprego dos trabalhadores. 3. Histórico científico: Ronald H. Coase, “The Nature of The Firm”, Economica (new series), Vol. 4, Issue 16, p. 386-405, 1937. O objetivo de uma organização empresarial é o de reproduzir a distribuição de fatores sob competição atomística dentro da firma, apenas fazendo sentido a produção de um bem ou serviço internamente em sua estrutura quando os custos disso não ultrapassarem os custos de obtenção perante terceiros no mercado, estes denominados “custos de transação”, método segundo o qual firma e sociedade desfrutam de maior produção e menor desperdício. 4. A Teoria da Administração qualifica a terceirização (outsourcing) como modelo organizacional de desintegração vertical, destinado ao alcance de ganhos de performance por meio da transferência para outros do fornecimento de bens e serviços anteriormente providos pela própria firma, a fim de que esta se concentre somente naquelas atividades em que pode gerar o maior valor, adotando a função de “arquiteto vertical” ou “organizador da cadeia de valor”. 5. A terceirização apresenta os seguintes benefícios: (i) aprimoramento de tarefas pelo aprendizado especializado; (ii) economias de escala e de escopo; (iii) redução da complexidade organizacional; (iv) redução de problemas de cálculo e atribuição, facilitando a provisão de incentivos mais fortes a empregados; (v) precificação mais precisa de custos e maior transparência; (vi) estímulo à competição de fornecedores externos; (vii) maior facilidade de adaptação a necessidades de modificações estruturais; (viii) eliminação de problemas de possíveis excessos de produção; (ix) maior eficiência pelo fim de subsídios cruzados entre departamentos com desempenhos diferentes; (x) redução dos custos iniciais de entrada no mercado, facilitando o surgimento de novos concorrentes; (xi) superação de eventuais limitações de acesso a tecnologias ou matérias-primas; (xii) menor alavancagem operacional, diminuindo a exposição da companhia a riscos e oscilações de balanço, pela redução de seus custos fixos; (xiii) maior flexibilidade para adaptação ao mercado; (xiii) não comprometimento de recursos que poderiam ser utilizados em setores estratégicos; (xiv) diminuição da possibilidade de falhas de um setor se comunicarem a outros; e (xv) melhor adaptação a diferentes requerimentos de administração, know-how e estrutura, para setores e atividades distintas. 6. A Administração Pública, pautada pelo dever de eficiência (art. 37, caput, da Constituição), deve empregar as soluções de mercado adequadas à prestação de serviços de excelência à população com os recursos disponíveis, mormente quando demonstrado, pela teoria e pela prática internacional, que a terceirização não importa precarização às condições dos trabalhadores. 7. O art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93, ao definir que a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, representa legítima escolha do legislador, máxime porque a Lei nº 9.032/95 incluiu no dispositivo exceção à regra de não responsabilização com referência a encargos trabalhistas. 8. Constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93 já reconhecida por esta Corte em caráter erga omnes e vinculante: ADC 16, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2010. 9. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte admitida, julgado procedente para fixar a seguinte tese para casos semelhantes: “O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”. (grifamos)
Em face do entendimento que o referido Acordão explicita, e que se tornou um “mantra” do empresariado, bem assim de outras mudanças de ordem legal, a terceirização cresceu consideravelmente no âmbito privado e no público.
Em novembro de 1995, a Emenda Constitucional nº 9 flexibilizou o monopólio estatal do petróleo, permitindo que outras empresas, além da Petrobrás, fossem contratadas para sua exploração, dando margem a que a terceirização passasse a ser fortemente adotada no setor petrolífero.
Em 1997, a Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472, de 16 de julho), no bojo do processo de privatização dos serviços públicos de telecomunicações, passou a permitir, na forma do seu art. 94, II, que as concessionárias poderiam, observadas as condições e limites estabelecidos pela Agência reguladora, “contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados”.
No mesmo ano, a Lei 9.527, de 10 de dezembro, resultante da Medida Provisória nº 1.573-7, de 2 de maio de 1997, revogou o parágrafo único do art. 3º da Lei nº 5.645, de 1970, o qual previa – permitindo interpretações limitadoras da terceirização no serviço público – que “as atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas serão, de preferência, objeto de execução indireta, mediante contrato, de acordo com o artigo 10, § 7º, do Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967.”
Em consequência, em 7 de julho de 1997, foi editado o Decreto nº 2.271, que adotou linha mais permissiva, prevendo em seu citado art. 10 que “no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade”, definindo-se, a priori, que “as atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta”.
Tal decreto, porém, vedava a execução indireta das atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
Em decorrência desse iter normativo e interpretativo dos limites legais e constitucionais à terceirização, a Súmula 331 chegou à sua redação, adotada em maio de 2011:
“331 – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – LEGALIDADE – REVISÃO DO ENUNCIADO N.256.
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário [Lei n. 6.019, de 3.1.74].
II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional [art. 37, II, da Constituição da República].
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância [Lei n. 7.102, de 20.06.83], de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio da Tomadora, desde que inexistente a pessoalidade a subordinação direta.
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação.”
Com tal interpretação, o TST pretendeu superar a noção de fraude à lei no âmbito das chamadas “atividades-meio”, tendo como base textos legais pré-existentes, e com o fim de conferir efetividade à Carta de 1988. A limitação da terceirização e sua vedação às atividades-fim trouxeram, porém, enormes desafios interpretativos, estando, porém, incorporada à jurisprudência trabalhista a noção esboçada por Maurício Godinho Delgado [2]:
“Atividades-fim podem ser conceituadas como as funções e tarefas empresariais e laborais que se ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador de serviços, compondo a essência dessa dinâmica e contribuindo inclusive para a definição de seu posicionamento e classificação no contexto empresarial e econômico. São, portanto, atividades nucleares e definitórias da dinâmica empresarial do tomador de serviços. Por outro lado, atividades-meio são aquelas funções e tarefas empresariais e laborais que não se ajustam ao núcleo da dinâmica empresarial do tomador de serviços, nem compõem a essência dessa dinâmica ou contribuem para a definição de seu posicionamento no contexto empresarial e econômico mais amplo. São, portanto, atividades periféricas à essência da dinâmica empresarial do tomador de serviços.”
Para contornar a diferenciação de tratamento entre empregados próprios e terceirizados, o Tribunal Superior do Trabalho adotou a Orientação Jurisprudencial OJ-383 SDI-1, nos termos a seguir:
“TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, “A”, DA LEI N.º 6.019, DE 03.01.1974 (DEJT divulgado em 19, 20 e 22.04.2010) A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei n.º 6.019, de 03.01.1974”
Contudo, em 30 de agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958252 e reiterando o teor do Acórdão do RE nº 760.931, adotou a tese – compatível com o disposto nos art. 4º-A e 5º-A da Lei nº 6.019, de 1974 – de que é lícita a terceirização em todas as atividades empresariais e em todas as etapas do processo produtivo, seja meio ou fim.
No julgamento da ADPF 324 e do RE 958252, com repercussão geral reconhecida, sete ministros votaram a favor da terceirização de atividade-fim e quatro contra.
A tese aprovada no RE, ignorando ou considerando superáveis pela via do recurso ao judiciário os efeitos perversos da terceirização, foi a seguinte:
“É licita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
No entanto, a terceirização de atividades-fim afronta o art. 7º, I da Carta Magna, que pressupõe a relação direta entre o trabalhador e o tomador do serviço. A interposição de terceiro entre os sujeitos da prestação do trabalho, de forma ampla e irrestrita, caracteriza intermediação de mão de obra, reduzindo o trabalhador a condição de mero instrumento ou objeto, em detrimento de sua dignidade. Afasta, assim, a garantia da proteção à relação de emprego, pois, mantida a intermediação, ela estará sendo fraudada e precarizada em seus aspectos essenciais, em afronta direta ao art. 6º, caput da CF, que inclui o trabalho como direito social fundamental.
Trata-se, com efeito, por mais que se tente justificar a terceirização como necessidade vinculada ao exercício da liberdade econômica ou necessidade de garantir-se a competitividade das empresas, elevando-se seus custos, ou gerar-se empregos, ainda que de menor qualidade, de relação de trabalho que, embora formalmente protegida, visto que o vínculo empregatício há de ser reconhecido em qualquer circunstância, tem como resultado a figura de um “trabalhador de segunda classe”, discriminado, sem identidade, tratado genericamente como “trabalhador terceirizado”. O trabalhador terceirizado não é tratado como parte da categoria profissional a que, efetivamente, pertence, e é tratado como mero objeto, em afronta ao valor social do trabalho como fundamentos da República, contemplado no seu art. 1º, IV, da proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos (art. 7º, XXXII), da valorização do trabalho como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput) e como base da ordem social (art. 193).
No caso do serviço público, impõe-se, ainda, considerar o disposto no art. 37, II da Constituição, segundo o qual o acesso a cargos e empregos públicos requer a aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos.
Nessa linha, o Tribunal de Contas da União vinha, reiteradamente, entendendo ilícita a terceirização ampla em órgãos e entidades públicas, como evidencia o ACÓRDÃO Nº 2303/2012 – TCU – Plenário:
MONITORAMENTO. ACÓRDÃO Nº 2.132/2010- PLENÁRIO. CONFORMIDADE DOS CONTRATOS DE TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA. INSUFICIÊNCIA DAS RESPOSTAS ÀS DETERMINAÇÕES. FALTA DE ENCAMINHAMENTO DAS INFORMAÇÕES REQUERIDAS E DE OUTRAS PROVIDÊNCIAS POR PARTE DA MAIORIA DAS EMPRESAS ESTATAIS. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA QUE APRESENTEM AO DEPARTAMENTO DE COORDENAÇÃO E GOVERNANÇA DAS EMPRESAS ESTATAIS (DEST) PLANO DE SUBSTITUIÇÃO DE TERCEIRIZADOS EM SITUAÇÃO IRREGULAR POR EMPREGADOS CONCURSADOS. CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DO ART. 25, § 1º, DA LEI Nº 8.987/1995 ÀS ESTATAIS CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO PÚBLICO E SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE NATUREZA JURÍDICA.CONSTITUIÇÃO DE APARTADO PARA MONITORAMENTO DAS PROVIDÊNCIAS A CARGO DAS EMPRESAS DO SISTEMA PETROBRAS.
1. A terceirização de atividades finalísticas e/ou de funções contempladas nos planos de cargos das empresas estatais concessionárias de serviço público configura ato ilegítimo e não encontra amparo no art. 25, § 1º, da Lei nº 8.987/1995, cuja interpretação deve se amoldar à disciplina do art. 37, inciso II, da Constituição Federal.
2. Nos termos da jurisprudência deste Tribunal (v.g. Acórdãos nºs 1.443/2007, 3.840/2008, 852/2010, 3.070/2011 e 3.071/2011, do Plenário), a terceirização de serviços de natureza jurídica somente é admitida para atender a situações específicas devidamente justificadas, de natureza não continuada, quando não possam ser atendidas por profissionais do próprio quadro do órgão ou entidade.”
No caso em questão, o TCU adotou a seguinte recomendação:
“9.7. alertar o Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (DEST), visando a que, no exercício de suas competências previstas no art. 6º, II, g, e XI, do Anexo I do Decreto nº 7675/2012, aquele órgão subordinado oriente os gestores públicos das estatais federais de que não será considerada de boa-fé por este Tribunal a terceirização de serviços que envolvam a contratação de profissionais existentes no Plano de Cargos e Salários do órgão/entidade por contrariar o art. 37, II, da Constituição Federal e, ainda, poder implicar futuros prejuízos ao Erário, decorrentes do possível acolhimento pela Justiça do Trabalho de pleitos dos terceirizados, garantindo-lhes o direito ao recebimento das mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, na esteira da Orientação Jurisprudencial n° 383 SDI-1 do TST;”
Assim, mesmo que, em tese, admissível, a terceirização do serviço público submetendo-se a legislação específica, que é o Decreto-Lei nº 200/67, a sua aplicação há de se dar em conformidade com o princípio do art. 37, II da Carta Magna, ou seja, não se admite a contratação, por essa via, de prestadores de serviços para prestar, em caráter indiscriminado e para atendimento de necessidades regulares e permanentes, serviços ao ente estatal, no âmbito e sua administração direta ou suas entidades da administração indireta, posto que tal situação configuraria burla ao sistema do mérito.
3. O teor do Decreto nº 9.507, de 2018
O Decreto nº 9.507, de 21 de setembro de 2018, dispõe sobre o tema nos termos a seguir, quanto aos seus aspectos essenciais:
- dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
- na forma do art. 2º, delega ao Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a publicação de ato para estabelecer serviços que serão preferencialmente objeto de execução indireta mediante contratação.
- nos termos do art. 3º, no âmbito da Administração pública federal direta, autárquica e fundacional, prevê que não serão objeto de execução indireta na administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os serviços:
I - que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle;
II - que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;
III - que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e
IV - que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
- os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de que tratam os incisos do caput poderão ser executados de forma indireta, vedada a transferência de responsabilidade para a realização de atos administrativos ou a tomada de decisão para o contratado.
As limitações contidas no art. 3º tentam traduzir o mesmo teor do § 7º do art. 10 do DEL 200/67, que menciona a terceirização como instrumento para que a Administração possa “melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle”. Assim, essas tarefas constituiriam o “centro” da atuação do Poder Executivo, cabendo, expressamente, a transferência para prestadores de serviços a “realização material de tarefas executivas”, mas desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
A definição legal, porém, revela-se algo obsoleta, pois refere-se a conceitos que, atualmente, tem caráter mais limitado do que tinham à época de sua formulação (1967). Por exemplo, o conceito de “planejamento” contido no inciso I do art. 3º está mais relacionado a uma noção de “planos de desenvolvimento” do que, em verdade, ao conceito moderno de formulação de políticas públicas, que reclama a atuação de estruturas profissionalizadas e autônomas, embora responsivas. O processo de políticas públicas, sob a coordenação do Estado, porém, envolve muitos atores, públicos e privados, mas, sem prejuízo da participação social, por meios próprios de debate, tem no Estado o locus de sua adoção e financiamento, podendo a implementação contar com a participação de atores privados. Já coordenação, supervisão e controle, encerram funções exclusivas de Estado, compartilhadas tanto por órgãos de centro de Governo, quanto por órgãos setoriais, e cuja implementação demanda o concurso permanente de servidores de carreira.
No tocante às limitações contidas nos incisos II e III, elas se adequam a limitações extraídas do próprio texto Constitucional, e.g. art. 247, que prevê que os servidores responsáveis pelo exercício de atividades exclusivas de Estado terão garantias especiais contra a perda do cargo [3]. Assim, essa condição especialíssima, objeto de decisão liminar na ADI 2.310, demanda o vínculo estatutário, e, ainda, proteção especial do servidor, sendo incompatível o exercício dessas funções no caso de contratação por tempo determinado (em caráter temporário) ou mediante prestação de serviços de terceiros.
A limitação contida no inciso IV reproduz a regra já prevista no Decreto 2.271/97, cujo § 2º do art. 1º, tem idêntico teor. Contudo, a regra ali prevista de que as atividades inerentes a cargos efetivos do órgão poderão ser terceirizadas se houver “expressa disposição legal” que o permita, ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal, abre enorme espaço para que se torne inservível para evitar ampliação da terceirização, mesmo em atividades finalísticas.
No que tange às atividades auxiliares, é uma definição imprecisa que não reflete, especificamente, a ideia de “realização material” de tarefas executivas, podendo ir muito além disso. A ressalva, ao final do § 4º, porém, preserva da terceirização a “responsabilidade para a realização de atos administrativos ou a tomada de decisão para o contratado”, mas não os atos de informação, preparação ou instrução processual para esse fim, o que pode ser fonte de riscos para processos decisórios sensíveis.
- os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de fiscalização e consentimento relacionados ao exercício do poder de polícia não serão objeto de execução indireta.
Também restam protegidos da terceirização atividades auxiliares, instrumentais ou acessórias de fiscalização e consentimento, relativas ao exercício do poder de polícia. Nesse sentido, o Decreto é mais cauteloso do que vem sendo a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Ao apreciar a hipótese do exercício do poder de polícia por entidades da administração indireta sujeitas ao regime de direito privado (empresas estatais), a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2009, assentou o entendimento, firmado na doutrina já mencionada, de que tais atividades abrangeriam quatro espécies de atos, quais sejam, legislação, consentimento, fiscalização e sanção. Dessas, as atividades de legislação e sanção não seriam passíveis de serem delegadas às entidades privadas integrantes da Administração Pública indireta. Assim, seriam passíveis de exercício por entidades da administração indireta sob regime de direito privado as atividades referentes ao consentimento e à fiscalização de trânsito, sendo vedada às mesmas, contudo, a delegação de atos relativos à aplicação de multas e, evidentemente, à legislação em matéria de trânsito. O Acórdão assim consignou o tema:
“(...) 2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).
3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.
4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação)? a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento)? a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização)? e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).
5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.
6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro aplicação de multas para aumentar a arrecadação.
7. Recurso especial provido.” (STJ, REsp 817.534/MG, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 10/11/2009, DJe 10/12/2009)
No âmbito do STF, a ADI 1.717 firmou, contudo, o entendimento de que são indelegáveis a entes de direito privado as atividades típicas (ou exclusivas) de Estado, como as que envolvem o exercício do poder de polícia. Na mesma linha, observa-se a também já citada decisão na ADI 2.310, exarada em 19 de dezembro de 2000, em que a Suprema Corte considerou não ser possível o desempenho de poder de polícia administrativa por empregados públicos celetistas, do que decorre a impossibilidade tanto de sua delegação a entidades da administração pública regidas pelo direito privado, quanto para entidades privadas, pela ausência de garantias aos seus empregados contra a perda do cargo.
Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 2009, por seu turno, adotou o seguinte entendimento:
"Limitações administrativas à liberdade e à propriedade (poder de polícia). Delegação. Impossibilidade. Por ser a supremacia geral poder de império, típico e ínsito ao próprio conceito de Estado, por ser imprescindível à sua própria existência, não pode nunca, sob exceção alguma, ser delegado a pessoas jurídicas de direito privado os atos jurídicos declaratórios das limitações administrativas. Apenas as atividades materiais precedentes, sucessivas e contemporâneas à expedição de ato jurídico de limitação administrativa podem ser delegadas (...)” APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n2 683.984-5/0-00 – TJSP, 06.02.2009.
- no tocante a empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União, não serão objeto de execução indireta os serviços que demandem a utilização, pela contratada, de profissionais com atribuições inerentes às dos cargos integrantes de seus Planos de Cargos e Salários, exceto se contrariar os princípios administrativos da eficiência, da economicidade e da razoabilidade, tais como na ocorrência de, ao menos, uma das seguintes hipóteses:
I - caráter temporário do serviço;
II - incremento temporário do volume de serviços;
III - atualização de tecnologia ou especialização de serviço, quando for mais atual e segura, que reduzem o custo ou for menos prejudicial ao meio ambiente; ou
IV - impossibilidade de competir no mercado concorrencial em que se insere.
Quanto às empresas estatais, o Decreto adota regras mais flexíveis, limitando de forma menos rigorosa a terceirização. Assim, mesmo no caso de atividades inerentes aos empregados permanentes, poderá ocorrer a terceirização, com fulcro, genericamente, na busca de “eficiência”, “economicidade ou “razoabilidade”, bastando que uma das condições supra mencionadas esteja presente.
Ora, como se percebe, os incisos III e IV são extremamente abertos a interpretações e a discricionariedade da empresa, e, com isso, pode-se dar a terceirização ampla a pretexto de satisfação de critérios como eficiência ou competitividade, para suprir demandas de “especialização” ou redução de custos.
Vale destacar, ainda, que a “impossibilidade” de competição no mercado concorrencial é termo indeterminado, e de quase impossível aferição, o que visa, essencialmente, a afastar a possibilidade de que órgãos de controle, como o TCU, entendam ilícita a terceirização.
O beneplácito do STF, nos julgamentos retro citados, dará, certamente, argumentos a que as empresas se valham dessa abertura para promover a ampla terceirização, com a substituição progressiva de pessoal concursado – prática que, inclusive, já se acha em curso em empresas como a Petrobras há algumas décadas.
- os empregados da contratada com atribuições semelhantes ou não às atribuições de empregados da contratante atuarão somente no desenvolvimento dos serviços contratados.
Essa previsão expressa o entendimento de que, de fato, não se está tratando de contratação de prestadores de serviços, mas de empregados para suprir necessidades de mão de obra, ainda que “com atribuições semelhantes” a de empregados, com a simples limitação de que atuem apenas “no desenvolvimento dos serviços contratados”. Essa previsão, porém, revela-se vazia de conteúdo normativo, no sentido de impedir ou limitar a ampla terceirização de atividades finalísticas.
- as restrições a terceirização não se aplicam quando se tratar de cargo extinto ou em processo de extinção.
Tratando-se a decisão, no caso de empresas estatais, que não depende de lei, uma mera decisão administrativa, adotada em sede de conselho de Administração, poderá nulificar quase totalmente as restrições. Para tanto, bastará que o novo Plano de Cargos, ou decisão de sua alteração, estabeleça que cargos de naturezas diversas, notadamente em atividades-meio, mas não apenas nelas, sejam colocados em extinção. A partir dessa simples decisão administrativa, poderá ser promovida ampla terceirização, à revelia do art. 37, II da Constituição.
- o Conselho de Administração ou órgão equivalente das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União estabelecerá o conjunto de atividades que serão passíveis de execução indireta, mediante contratação de serviços.
Note-se aqui que, em lugar de definir, como no caso da Administração direta, autárquica e fundacional, o que NÃO PODE ser objeto de terceirização, o Decreto delega ao Conselho de Administração a elaboração de uma lista “ABERTA” que poderá contemplar a totalidade dos cargos contidos em seu Plano de Cargos. Como não existe, no caso das empresas estatais, “atividade exclusiva de Estado”, nos termos do citado art. 247, os limites para tanto são bastante fluidos, nulificando a própria garantia de que o acesso aos empregos públicos seja vinculada ao concurso público.
- na forma do art. 5º, é vedada a contratação, por órgão ou entidade de que trata o art. 1º, de pessoa jurídica na qual haja administrador ou sócio com poder de direção que tenham relação de parentesco com:
I - detentor de cargo em comissão ou função de confiança que atue na área responsável pela demanda ou pela contratação; ou
II - autoridade hierarquicamente superior no âmbito de cada órgão ou entidade.
Trata-se de norma que visa, apenas, a evitar corrupção e contratação favorecida de prestadores de serviços. A norma não atinge, portanto, o cerne da questão, que é o da ampla possibilidade de terceirização.
- O art. 7º veda a inclusão de disposições nos instrumentos convocatórios que permitam:
I - a indexação de preços por índices gerais, nas hipóteses de alocação de mão de obra;
II - a caracterização do objeto como fornecimento de mão de obra;
III - a previsão de reembolso de salários pela contratante; e
IV - a pessoalidade e a subordinação direta dos empregados da contratada aos gestores da contratante.
Particularmente quanto ao inciso IV, supra, trata-se do reconhecimento de que o trabalhador terceirizado não guarda relação de subordinação com o contratante, e, assim, não pode integrar a hierarquia administrativa da empresa, e, consequentemente, não pode responder por funções que estejam sujeitas a responsabilização administrativa.
Nesse sentido, o Decreto se revela contraditório, por permitir, de forma ampla, a terceirização de atividades que, no caso das empresas, exercerão tais funções.
- o art. 9º prevê que os contratos de prestação de serviços continuados que envolvam disponibilização de pessoal da contratada de forma prolongada ou contínua para consecução do objeto contratual exigirão:
I - apresentação pela contratada do quantitativo de empregados vinculados à execução do objeto do contrato de prestação de serviços, a lista de identificação destes empregados e respectivos salários;
II - o cumprimento das obrigações estabelecidas em acordo, convenção, dissídio coletivo de trabalho ou equivalentes das categorias abrangidas pelo contrato; e
III - a relação de benefícios a serem concedidos pela contratada a seus empregados, que conterá, no mínimo, o auxílio-transporte e o auxílio-alimentação, quando esses forem concedidos pela contratante.
- A administração pública não se vincula às disposições estabelecidas em acordos, dissídios ou convenções coletivas de trabalho que tratem de:
I - pagamento de participação dos trabalhadores nos lucros ou nos resultados da empresa contratada;
II - matéria não trabalhista, ou que estabeleçam direitos não previstos em lei, tais como valores ou índices obrigatórios de encargos sociais ou previdenciários; e
III - preços para os insumos relacionados ao exercício da atividade.
Mais uma vez, a norma explicita que, de fato, se trata de contratação de pessoal e não de serviços¸ ao referir-se expressamente à “disponibilização de pessoal”. Assim, o que se tem é um determinado número de empregados (inciso I) que irão prestar o serviço, suprindo necessidades de mão-de-obra, os quais deverão ser individualizados e, assim, presente a personalização da prestação do serviço.
Esses trabalhadores, ademais, como bem evidenciam a regras que excluem a Administração Pública de obrigações relativas a direitos, serão trabalhadores de segunda classe, ou seja, não alcançados pela isonomia de direitos e remunerações. Trata-se de corolário do princípio de que a terceirização deve conduzir a uma operação “mais eficiente” e “menos onerosa” à empresa contratante.
- Na forma do art. 14, as empresas públicas e as sociedades de economia mista controladas pela União adotarão os mesmos parâmetros das sociedades privadas naquilo que não contrariar seu regime jurídico e o disposto neste Decreto.
Aqui fica explícito que as empresas estatais poderão adotar, em geral, os mesmos procedimentos adotados pelas empresas privadas. A ressalva ao seu “regime jurídico” e ao disposto no referido Decreto não serão, como demonstrado, suficientes para impedir que haja excessos na terceirização, dada a grande flexibilidade que é concedida às empresas.
A medida guarda correlação com o que, em linhas gerais, prevê a Constituição no seu art. 173, § 1º, II, que prevê que a empresa pública e a sociedade de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços sujeitam-se “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”. Trata-se, porém, de tema que demanda tratamento em lei, e não em decreto, mas que não foi abordado na Lei nº 13.303, de 2016 – Estatuto das Estatais.
- revogação do Decreto nº 2.271, de 1997.
Como a norma trata integralmente do tema, é revogado o Decreto 2.271, de 1997, o qual se aplicava apenas a Administração direta, autárquica e fundacional. Essa norma, cujo escopo era mais limitado que o Decreto 9.507/2018, já enfrentou, na sua aplicação, a reiterada burla e o abuso dos administradores que terceirizaram atividades de forma ilícita.
Assim, a sua revogação e substituição pelo novo Decreto prenuncia um avanço da terceirização, que requererá das entidades sindicais e órgãos de controle uma vigilância redobrada e atuação constante para a coibição de abusos.
No entanto, como antes demonstrado, a aplicação combinada do art. 37, II da Constituição, do art. 10, § 7º do DEL 200/67, e dos princípios da moralidade e impessoalidade será um paliativo para o enfrentamento da nova onda neoliberal e privatista, que tem o beneplácito do Supremo Tribunal Federal e, ainda, o amparo da legislação trazida a lume pela Reforma Trabalhista.
- vigência: na forma do art. 18, o Decreto nº 9.507/2018 entra em vigor cento e vinte dias após a data de sua publicação.
Trata-se de cláusula de vigência que, em face da profundidade da norma, impede que tenha efeitos imediatos, conferindo prazo para que se dê a sua implementação e, inclusive, ajustes, dada a imprecisão e ambiguidade de diversos dispositivos.
Nesse prazo, será possível promover-se um exame mais acurado de suas implicações e, eventualmente, adotar-se medidas, inclusive na esfera judicial, que possam mitigar os efeitos retro mencionados.
(*) Consultor legislativo do Senado Federal. Advogado, mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais
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NOTAS
[1] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 438. Ver, ainda, GONÇALVES, Antônio Fabrício de Matos, op cit.
[2] DELGADO, Maurício (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTR, 2015, p. 468.
[3] Art. 247. As leis previstas no inciso III do § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Parágrafo único. Na hipótese de insuficiência de desempenho, a perda do cargo somente ocorrerá mediante processo administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)