Estamos ainda atordoados com o choque dos acontecimentos. Mas penso que o caso de Marielle pode fomentar uma revolta capaz de gerar alguma uma transformação política que ao menos sinalize para a diminuição da violência, para a inclusão social dos fracos e oprimidos, valorização dos trabalhadores etc. Assim sua morte trágica não terá sido em vão.

Carolina Maria Ruy*

Todos os dias morrem tantas pessoas vítimas de violência, pobreza e descaso no Brasil. Faz parte da nossa situação social precária, da desigualdade social e cultural que se perpetua, defendida e mantida por classes sociais que se privilegiam desta situação.

Entre tantas vítimas, jovens ou não, mulheres ou homens, gays ou héteros, negros, pardos, índios, até mesmo brancos, por que há uma indignação dedicada ao assassinato de uma pessoa específica? Por que, ao menos ontem e hoje, há uma comoção, em grande parte espontânea e, em parte, interesseira em torno do assassinato da vereadora Marielle Franco, me pergunto?

Lembrei-me do assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto, em 1968, que, embora tantas pessoas tenham morrido naquele período, tornou-se mártir de uma insurgência que veio depois. E também do José Martinez, sapateiro, cujo assassinato na greve geral de 1917 fomentou uma revolta que deu uma dimensão inesperada àquele movimento. Muitos trabalhadores e alguns policiais morreram na greve, mas o Martinez, a exemplo de Edson Luís, tornou-se símbolo. Ambos marcaram nossa história.

O fato de não ser só mais uma morte, mas a possibilidade de um ponto de virada, um evento catalisador, iguala Marielle, ao sapateiro e ao estudante. Considero, entretanto, que a execução da vereadora tem um sentido ainda mais amplo e mais complexo. Isso porque ela é mais do que a imagem de uma pessoa comum, gente como a gente. Ela dava voz a uma luta social em favor da igualdade e contra o sistema de privilégios citado acima. Por isso, muito provavelmente, foi assassinada. Foi assassinada porque não era apenas um indivíduo, era a voz de milhões. Seu assassinato representa, neste sentido, a defesa e a manutenção do sistema de privilégios citado acima.

Lembrei, então, de outro assassinato, que considero ainda mais semelhante ao de Marielle do que o dos jovens de 1917 e 1968. O assassinato da jornalista irlandesa Verônica Guerin, que conheci através do filme “O custo da coragem” (2003).

Verônica investigou a fundo a máfia e o tráfico de drogas em Dublin, capital da Irlanda, durante a década de 1990 e denunciou a ligação que alguns dos mais importantes gângsteres tinham com o IRA. Foi ameaçada e, por fim, executada com seis tiros , na estrada de Naas, arredores de Dublin, por dois jovens que a seguiam de moto, em plena luz do dia, em 1996.

Sua morte trágica não foi em vão. A população foi às ruas fazer protestos e os barões do tráfico tiveram seus bens confiscados e foram presos. Um ano depois do acontecido, os crimes caíram em mais de 50% na Irlanda.

Matar uma pessoa para calá-la é uma medida extrema com custo alto. No limite a ação demonstra que a pessoa calada, morta, estava no caminho certo. E pode acabar sendo um tiro no pé em casos em que a tragédia se torna um amplificador para uma voz que atingia apenas um raio determinado de mobilização.

É cedo para elucubrações. Estamos ainda atordoados com o choque dos acontecimentos. Mas penso que o caso de Marielle pode fomentar uma revolta capaz de gerar alguma uma transformação política que ao menos sinalize para a diminuição da violência, para a inclusão social dos fracos e oprimidos, valorização dos trabalhadores etc. Assim sua morte trágica não terá sido em vão.

(*) Jornalista, é coordenadora do Centro de Memória Sindical (CMS)

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