Com essa base, é improvável que Temer seja capaz de aprovar reformas estruturais e deverá passar os próximos 16 meses de mandato debelando crises, afirma.

Mariana Sanches
Da BBC Brasil em São Paulo
3 agosto 2017

O resultado da votação na Câmara na última quarta-feira (2) tem efeitos muito mais amplos do que o arquivamento da denúncia por corrupção passiva contra o presidente Michel Temer. A afirmação é do filósofo e cientista político da Unicamp Marcos Nobre, um especialista em PMDB.

Marcos Nobre

De acordo com ele, em sua face mais visível, a votação lançou o peemedebista e seu governo no colo do chamado Centrão — uma bancada suprapartidária de parlamentares de pouca expressão organizados pela primeira vez sob a batuta do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ), atualmente preso pela Lava Jato.

Com essa base, é improvável que Temer seja capaz de aprovar reformas estruturais e deverá passar os próximos 16 meses de mandato debelando crises, afirma.

Em seu aspecto mais relevante, no entanto, a votação representou uma "cisão incontornável" do PSDB.

Na sua avaliação, o partido está dividido ao meio pelo anseio do governador paulista Geraldo Alckmin de viabilizar sua candidatura presidencial em 2018 e do pragmatismo do senador Aécio Neves, que se coloca como líder do Centrão.

E as manobras de bastidor de Aécio, que ajudaram a garantir a vitória a Temer, aumentaram o poder político do tucano e sua rede de proteção contra os efeitos das investigações que ameaçam prendê-lo. "Aécio Neves é o novo Eduardo Cunha", diz Nobre.

Na bancada tucana, a divisão se expressou em 21 votos a favor da denúncia, 22 contra e quatro abstenções. "Metade do PSDB, a turma do Aécio, desceu do muro ontem. E o Centrão vai forçar o resto a descer também", afirma Nobre.

Nesta entrevista à BBC Brasil, o cientista político analisa as condições atuais e futuras do campo político da centro-direita.

BBC Brasil - O que o resultado da votação significa para o futuro político de Temer?

Marcos Nobre - O que importa não é exatamente o que aconteceu com o Temer, a rejeição da denúncia. O que estava em causa hoje era não só a manutenção de Temer, mas a própria eleição de 2018. E o resultado é o mais duro golpe que a gente pode imaginar no PSDB.

Dá pra dizer que as balizas da centro-esquerda foram definidas no impeachment da Dilma e o que foi decidido ontem é o que vai acontecer com a centro-direita em 2018. E a situação é de guerra no campo da centro-direita. Há uma divisão que não é só uma divisão, é uma cisão incontornável, irretrocedível.

BBC Brasil - Como se dá essa divisão?

Marcos Nobre - O PSDB está rachado no meio. Uma metade quer construir um polo para a eleição de 2018 que organiza o Centrão da Câmara e se liga a ele. A outra parte pensa que, se ficar pendurada ao governo Temer e ao Centrão no Congresso, não tem chance eleitoral em 2018.

BBC Brasil - Há um cálculo ideológico desse segundo grupo?

Marcos Nobre - Ideológico nada, porque se o governo Temer fosse popular estaria todo mundo abraçado com ele. É um cálculo eleitoral mesmo.

Então, temos o Aécio no primeiro grupo e Alckmin no outro e não há mais acordo. Enquanto o Aécio ainda não estava morto - porque hoje ele é um morto-vivo - havia uma disputa entre ambos pela candidatura presidencial. A partir do momento que o Aécio é ferido de morte, Alckmin achou que ia ganhar por W.O.

BBC Brasil - Mas o resultado de ontem mostra que o jogo não vai ser fácil?

Marcos Nobre - Sim. O que o Aécio fez? Ele grudou no governo Temer e grudou no Centrão. O que estamos vendo agora é uma tentativa de construir um novo polo em plano nacional, juntar esse centrão do Congresso com uma parte do PSDB.

BBC Brasil - Por que isso interessa a Aécio?

Marcos Nobre - Para o Aécio, defender o Temer é defender a si mesmo. E o mesmo vale para a maioria dos políticos com mandato parlamentar. Quando votam sim, para impedir a denúncia, os parlamentares estão fazendo uma autodefesa. No caso do Aécio, a imagem é bastante clara até porque ele e o Temer foram pegos na mesma delação, do Joesley Batista.

Como Aécio já não tem o governo do Estado de Minas Gerais, ele precisa do governo federal para compensar, para ter algo para oferecer para esse grupo que ele está formando. Então você tem um grupo que vai ficar muito coeso com o governo e que espera em troca receber cargos e verbas, que é o Centrão.

BBC Brasil - Qual é a vantagem para o Centrão de abraçar Temer?

Marcos Nobre - Pense que a eleição do ano que vem será feita sem doação empresarial e haverá limitação de doação de pessoa física.

Logo, estar grudado no governo significa uma vantagem enorme: se por um lado tem que carregar um governo impopular, por outro você tem cargo e recurso, tem a máquina. E ter boas condições de campanha é essencial para se reeleger e conseguir manter o foro privilegiado, sem cair na mão do juiz Sergio Moro.

Então o sistema funciona totalmente em autodefesa, já não tem mais nenhuma relação com representação. Então você de um lado disputa pelos recursos da máquina federal, e por outro disputa pelo fundo eleitoral novo, que vai ser criado pela reforma política (em tramitação no Congresso).

É isso o que eles querem, o Centrão está parafraseando o Zagallo: "vocês vão ter que me engolir". Eles bloqueiam os recursos de qualquer partido novo e tem o monopólio da representação, para ser candidato você precisa estar em um desses partidos.

BBC Brasil - Então é improvável que o Partido Novo ou a Rede consigam viabilizar seus candidatos em 2018?

Marcos Nobre - Existe o imprevisível. Mas o que o sistema político inteiro está fazendo é impedir que o imprevisível aconteça. Todas as estratégias de bloqueio para que algo novo apareça estão em curso. Até o momento eles estão sendo muito eficientes. Porém, se você quer ser um candidato que tenha chance na eleição presidencial, você não pode entrar nesse esquema, se não você não tem chance.

Então tem duas estratégias: a do Aécio é dizer assim "gente, o que estamos propondo são as melhores condições disponíveis para renovar mandatos parlamentares, sem mirar em eleição presidencial", ele já abandonou a pretensão presidencial e está oferecendo máquina, então não importa quem vai ser o candidato a presidente.

A do Alckmin é a seguinte: ou eu me apresento como algo diferente do que está aí ou não tenho chance na eleição presidencial. É essa a guerra.

BBC Brasil - Não há espaço para esses dois anseios no PSDB?

Marcos Nobre - Não. E também não há um plano B. O Alckmin criou um apêndice para si, um anexo que era o PSB, quando ele colocou o Márcio França de vice-governador. Mas veja a manobra do Aécio com o Rodrigo Maia: ele esvazia o PSB e faz com que os parlamentares migrem para o DEM, reforçando o Centrão. Então é um ataque especulativo fortíssimo.

Ou seja, se o Alckmin perder a briga dentro do PSDB, o PSB já não é mais uma alternativa para ele, porque ele vai ficar muito reduzido. Ao mesmo tempo o Rodrigo Maia aproveitou a posição estratégica que ele tem (como presidente da Câmara) e negociou sua entrada no acordo desde que o DEM crescesse.

BBC Brasil - Aécio é o herdeiro do Eduardo Cunha na organização do baixo clero do Congresso?

Marcos Nobre - Exatamente. É a coisa mais louca do mundo, mas é isso que está acontecendo. É um choque de tal ordem, que nem sei como explicar isso. O Aécio está na posição que o Cunha estava. E quem está fazendo isso pelo Aécio na Câmara é o (ministro da Secretaria de Governo Antonio) Imbassahy. Porque o Aécio está no Senado, então ele tem dois interlocutores na Câmara, o Imbassahy e o Rodrigo Maia.

O Aécio é o novo Cunha, vai querer construir esse polo grudado no governo, Centrão e depois eles pensam em quem vai ser candidato, mas primeiro ele tem que consolidar esse polo e ganhar a guerra dentro do PSDB.

BBC Brasil - Mas há algumas ambiguidades aí, não? O Alckmin poderia ter feito antes um movimento de ruptura com o governo Temer e na verdade não fez. Ele e o João Doria ficaram pedindo cautela. Calcularam errado?

Marcos Nobre - Eles já não estão mais fazendo isso. O Doria é meio atrasado, esquecem de avisar para ele da mudança da correlação de forças e ele não entende sozinho. O Doria não tem a menor noção do que seja a política. Ele entende de mídia social. De política, ele não sabe como funciona. Muito menos Brasília.

Deixando o Doria de lado, a ideia do Alckmin era jogar parado: ele olhava o quadro e pensava que Aécio e Serra iam ser pegos na Lava Jato e que ele ia se livrar, logo bastava esperar. Ele não pensou errado. Se ele entrasse numa disputa com o governo Temer no primeiro momento, ia perder porque o Aécio era o presidente do partido e tinha o partido na mão. E perder o PSDB significava perder a candidatura presidencial. A leitura dele era que ele ia levar.

Só que o tamanho da onda que veio contra o Aécio, nem o Alckmin esperava. Quando ele viu, pensou: 'estou tranquilo, não tenho mais adversário'. E aí ele fez um acordo com o Aécio, de não chutá-lo enquanto Aécio estivesse caído. Deu tempo do Aécio reagir. Não a ponto de ele poder ser candidato a alguma coisa. Mas a ponto do Aécio poder construir alguma coisa, ocupar esse lugar de Cunha que ele não tinha antes. E isso aí o Alckmin não viu. O Aécio deu a volta nele.

Se você prestar atenção, quantos deputados disseram: 'voto no relatório do PSDB?'. Eu contei quase 100, que realmente enfatizaram esse dado. Essa coisa que o relatório era do PSDB era para mostrar para os não aecistas o seguinte: 'agora vocês terão que descer do muro'. É o Centrão que está dizendo que vai ter que descer do muro. Esses caras arriscaram o pescoço para defender o governo e agora vão querer o pagamento, vão pedir os cargos do PSDB. Ao mesmo tempo, o governo diz que não vai punir ninguém com perda de cargos. Isso é insustentável.

Então a questão é: o racha no PSDB vai ser a ponto de haver migração partidária? Ou fica claro que alguém tem maioria no partido e o outro sai, que é o que não parece provável, ou eles vão passar seis meses se matando até alguém conseguir uma maioria.

Esse é o problema da centro-direita: se você grudar no governo Temer, você não tem chance presidencial, mas tem chance de renovar o mandato pela desigualdade de recursos que vão ter (em relação a) outros candidatos.

BBC Brasil - Em 16 anos, essa parece ser a melhor chance da centro-direita de ganhar a eleição, no ano que vem. Ao mesmo tempo, a centro-direita está extremamente fragilizada para o jogo agora. Como explicar?

Marcos Nobre - Deu muito errado o impeachment. Foi uma jogada evidentemente errada para a centro-direita. Os partidos ficaram com medo porque no mensalão eles decidiram deixar o Lula sangrar, sem tirá-lo. E em 2006 o Lula ganhou a eleição. Aí eles pensaram que se adotassem a mesma tática com a Dilma, vai que ela se recuperasse e o Lula fosse candidato. Resolveram liquidar a fatura.

Mas aí o problema caiu no colo deles. Não tem como você apoiar o impeachment e dizer que não tem nada a ver com o Temer. E resultou em uma desorganização geral, tanto do campo da centro-esquerda quanto da centro-direita. Mas o Centrão já decidiu: melhor ter o dinheiro à vista do que a prazo, e candidato a presidente eles inventam na hora, porque não tem problema nenhum.

BBC Brasil - Quem vai levar essa briga dentro do PSDB?

Marcos Nobre - Não dá pra decidir ainda. Do ponto de vista eleitoral, a estratégia do Alckmin parece muito mais razoável. Mas tudo depende de como ele vai conseguir desembarcar do governo. Ele não pode desembarcar se o PSDB não desembarcar. Eles lidaram muito mal até agora com tudo. Mas agora chegou a hora em que eles vão ter que descer do muro por uma razão muito simples: metade do partido já desceu, a turma do Aécio.

Ele já escolheu a estratégia dele para 2018 e tem base. O Centrão são 170 deputados, mais o pessoal de Minas, o povo que deve favor pro Aécio, dá uns 220. É uma base muito forte e que vai querer esses recursos do governo federal. O Aécio sabe operar em Brasília e o Alckmin não. A questão é que o Aécio vai querer botar o Alckmin para fora.

BBC Brasil - Como avalia o pronunciamento do Temer após a votação?
Marcos Nobre - Se fosse pra fazer metáfora futebolística, ele apareceu no púlpito para comemorar o título da série C e a subida para a série B.

BBC Brasil - Qual passa a ser o papel de Aécio no governo Temer?

Marcos Nobre - As movimentações estão muito claras em Brasília. Aécio se tornou uma peça central da articulação do governo. É evidente que o Temer não consegue organizar um governo, ser presidente, então o Aécio vai assumir ali. Essa votação é o empoderamento final da posição de Aécio no papel de Cunha. Não à toa há um novo pedido de prisão do Janot agora.

BBC Brasil - A dependência do Temer em relação ao Centrão vai ficar ainda maior agora?

Marcos Nobre - Completamente. Temer acha que é o Itamar (Franco), mas é o Sarney. E depende do Centrão.

BBC Brasil - E a posição de Rodrigo Maia? Em dado momento até pareceu que ele assumiria o lugar do Temer.

Marcos Nobre - Durou duas semanas o sonho do Maia. O que aconteceu é interessante. Uma coisa é você usar um movimento de rua para fazer um impeachment. Outra coisa é o próprio sistema começar a se comer, não tem mais rua. Se tirassem o Temer, era apenas o sistema se autodevorando. Então as forças políticas perceberam que era um caminho perigoso.

BBC Brasil - Mas Maia tinha pretensões de ser presidente, não?

Marcos Nobre - Desde que se elegeu presidente da Câmara, a quantidade de reuniões que Maia faz com mercado financeiro e empresários é impressionante. Eu nunca tinha visto uma atividade comparável a essa. Ele resolveu deixar claro que era um player. Se colocou de uma maneira diferente e construiu uma posição própria.

Quando vem a gravação do Joesley, o telefone de Maia começou a tocar. Eram empresários sugerindo que ele assumisse e evitasse um caos. Maia permitiu que essas conversas acontecessem e aproveitou da posição familiar que tem com o ministro Moreira Franco, padrasto da mulher dele, para impedir que se disseminasse a versão de que ele era traidor.

Só que o Temer deu um contragolpe: chamou o pessoal do PSB para se filiar ao PMDB. A mensagem era para o Maia: "se você continuar nessa linha, eu vou te desidratar".

Maia, lembremos, estava negociando a ida desses mesmos parlamentares para o DEM. Ele topou recuar e, em troca, Temer não ia atrapalhar o crescimento do DEM, que vai voltar para o jogo político como um ator importante. Para Maia, foi ótimo negócio, ele se projetou e fortaleceu o partido, está bem, pode ser o candidato a governo no Rio. E nessa negociação, surge mais uma vez o Aécio.

Na formação desse blocão, além do DEM e do PMDB, é preciso ter gente do PSD e do PP. Maia entra nesse Centrão de Aécio com capacidade de direção, já que distribui as pautas, como presidente tem uma posição estratégica. Ele adquiriu um status que ele mesmo jamais teria imaginado na vida.

BBC Brasil - Com esse cenário, existe alguma chance de aprovação das reformas?

Marcos Nobre - Ah, não. Isso acabou. Eles já admitem que a da Previdência não vai dar. Agora é aquele momento Sarney e com essas duas estratégias dentro da centro-direita, de grudar em Temer e de afastar.

As elites econômicas que imaginaram passar o poder do Temer para implementar a agenda que nenhum governante que depende de votos será capaz de tocar se equivocaram, foi um lance malfeito. O que passou até agora é um Frankenstein. A Reforma Trabalhista é uma loucura, metade do empresariado acha que não faz muito sentido.

A questão é como organiza o "governo Sarney" nesse último ano e meio.

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