Barroso, negros de primeira linha e a reforma trabalhista
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- Categoria: Agência DIAP
Os testes de Milgram poderiam ser feitos atualmente no Brasil que poderiam resultar, em relação aos negros e aos trabalhadores, em dados similares: a reprodução diuturna da violência racial ou em relação ao Direito e à Justiça do Trabalho, estando as duas interligadas. A autoridade cria a sociedade de linhas, castas, categorias de pessoas.
Rodrigo de Lacerda Carelli*
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, durante discurso de homenagem a Joaquim Barbosa, chocou a muitos ao afirmar que o ex-colega era um “negro de primeira linha” [1]. O próprio ministro Barroso se disse chocado com o que ele mesmo disse, pedindo desculpas “às pessoas a quem possa ter ofendido ou magoado, (…) sobretudo, se, involuntária e inconscientemente, tiver reforçado um estereótipo racista que passeia a vida tentando combater e derrotar [2].”
O pedido de perdão do ministro Barroso é tão revelador quanto a sua primeira afirmação. Ele tem razão em dizer que a dor que causou nos outros foi involuntária e inconsciente e reforça um estereótipo de violência a todo um grupo de pessoas. E que é necessário combater e derrotar esse modo de pensar, que orienta as pessoas a realizá-lo sempre e sempre.
O trabalho do psicólogo social norte-americano Stanley Milgram é bem ilustrativo do mal que padece o ministro Barroso e, segundo os estudos desse pesquisador, atinge a maior parte das pessoas. Dois estudos, em particular, são ilustrativos: em um deles, uma pessoa é colocada junto a outras cinco, para realizar um teste, que consistia em responder a perguntas a todos igualmente dirigida. Uma só pessoa era testada a cada vez, pois não sabe que as demais eram, em verdade, participantes instruídos do projeto. Em determinado ponto, os participantes instruídos passam a escolher respostas que claramente estavam erradas, sendo que a pessoa testada também, na maior parte das vezes, a escolher essa alternativa, somente para acompanhar o grupo. A experiência demonstrava que as pessoas poderiam ser capazes de dizer coisas que contrariam seu próprio senso de realidade [3].
No entanto, o estudo mais impactante de Stanley Milgram foi o da possibilidade de que a maior parte de pessoas possa infligir dor em outra, obedecendo a uma autoridade que entende legitimada, mesmo sabendo que está cometendo um mal. Nesse experimento, Stanley colocava uma pessoa que acreditava estar dando choques a outra quando esta dava respostas erradas a um teste de múltipla escolha. 65% das pessoas continuavam seguindo a autoridade – o pesquisador – mesmo quando a pessoa que supostamente recebia os choques gritava de dor [4]. Milgram entendeu que “pessoas comuns, que estão apenas fazendo seu trabalho e não apresentam qualquer tipo de hostilidade, podem tornar-se agentes de um processo terrível e destrutivo [5].”
Outras falas do ministro Barroso vão na mesma direção, assumindo o discurso, talvez de igual forma involuntárias e inconscientes, da autoridade que entende legítima – neste caso, o chamado Mercado -, mas que pode causar sofrimento a muitos. Por exemplo, o ministro Barroso foi a Londres participar de evento denominado “Brazil Forum” e realizou firme defesa da reforma trabalhista. Barroso teria afirmado que o “Brasil, sozinho, é responsável por 98% dos processos trabalhistas de todo o planeta”, enquanto tem 3% da população mundial [6]. Causa espanto um dado tão agressivo a qualquer razoabilidade e tão distante dos fatos tenha saído da fala do ministro Barroso, membro da cúpula do Poder Judiciário, que supostamente deveria conhecer seus ramos. Em 2015, o Brasil teve 2.619.867 casos novos na Justiça do Trabalho [7]. No mesmo ano, a França teve 184.196 novos casos trabalhistas [8], a Alemanha teve 361.816 ações [9] e, somente a Espanha, 1.669.083 casos [10]. Não precisamos fazer cálculos profundos de matemática para só com essa pequena amostra a fim de verificar quão afastados da realidade estão os dados apresentados pelo ministro.
O ministro teria afirmado também que o Citibank decidiu deixar de operar no Brasil quando detectou que obtinha no país 1% de suas receitas, mas sofria 93% das ações trabalhistas [11]. Mais uma vez estamos diante de fala assustadora do ministro Barroso, sem aparente base na realidade, pois os próprios informes do banco e as análises do mercado financeiro, antes, durante e depois do encerramento das atividades da citada instituição bancária no varejo brasileiro, davam conta que o Citibank deixou não só o Brasil, mas também a Argentina e a Colômbia, estando tal decisão vinculada ao planejamento estratégico da instituição realizado em 2014, quando houve a deliberação de deixar os países nos quais o banco não tinha presença relevante, com o fim de concentrar suas atividades em clientes corporativos e institucionais nesses países, não havendo qualquer menção à questão trabalhista. Aliás, os analistas inclusive expressamente indicaram que a decisão não tinha nenhuma ligação com as características inerentes a esses mercados [12].
Barroso creditou ao presidente da Riachuelo, Flavio Rocha, os dados inverossímeis sobre o percentual de ações trabalhistas brasileiras em relação ao mundo e as causas da saída do Citibank do mercado brasileiro [13]. Flavio Rocha tem sido, representando o “Mercado”, um dos articuladores mais engajados e entusiastas na reforma trabalhista [14], tendo inclusive participado de reunião com a Presidente do Supremo Tribunal Federal para tratar do tema [15]. Cabe lembrar que, em uma dessas ações trabalhistas que compõem o mais que exagerado percentual que o empresário e o ministro difundem, a empresa de Flavio Rocha foi condenada por condições degradantes de trabalho, nas quais a trabalhadora teria que colocar elástico em 500 calças por hora [16]. Esse não foi um caso isolado, pois condições generalizadas de trabalho igualmente degradantes foram denunciadas na sua cadeia produtiva no sertão nordestino [17].
Barroso, talvez animado pelos dados duvidosos fornecidos pelo representante do Mercado, continuou no ataque ao Direito do Trabalho em palestra no Tribunal Superior do Trabalho, falando a jovens juízes trabalhistas, afirmando que o excesso de proteção trabalhista acaba desprotegendo, “o que é ruim para o cidadão”. O modelo excessivamente paternalista, segundo afirmou, “infantiliza, isso quando não estimula as pessoas a serem incorretas”. E teria acrescentado que um dos papeis dos juízes é contribuir para a emancipação das pessoas [18]. O mercado de trabalho “ultraprotegido” com trabalhadores “infantilizados” no Brasil é aquele em que, mesmo antes da Reforma precarizante, está em quarto lugar no mundo em acidentes de trabalho [19], com mais de mil trabalhadores escravos resgatados no ano de 2015 (a maior parte na zona urbana) [20] e que, do grande número de ações trabalhistas que ajuíza, metade se refere a falta de pagamentos das verbas devidas pelo empregador na rescisão, sendo que as matérias mais demandadas estão pagamento de salários, férias e décimo terceiro salário. Ou seja, a existência de um número assustador de ações trabalhistas decorre do descumprimento de direitos e obrigações básicas dos empregadores. A reforma defendida por Barroso, que vai retirar ainda mais a já frágil proteção do direito trabalhista brasileiro e dificultar o acesso à Justiça, vai ocasionar mais sofrimento e mais lesão aos trabalhadores.
Percebe-se, então, que a frase “negro de primeira linha” não é deslocada de toda um modo de raciocínio construído e determinado. Na linha dos experimentos de Mildram, não é culpa de Barroso: ele somente reproduz a fala e o pensar da elite brasileira, que mantém a desigualdade social característica da sociedade brasileira, e todos os seus conhecidos males. O pensamento de Barroso é aquele construído pela autoridade que se entende por legítima – a elite brasileira -, que durante séculos, guia os (des)caminhos tupiniquins desde que esta terra foi tomada dos seus nativos. Hoje essa elite é representada pela figura quase divina do “Mercado”.
No entanto, algo que Barroso não deve ter percebido é que o que propõe não é inédito. A emancipação que sugere para as pessoas trabalhadoras, por meio do fim da proteção trabalhista e o afastamento da Justiça do Trabalho, foi “concedida” aos negros brasileiros pela lei áurea, no fim do Século 19. Os negros, então, foram jogados à própria sorte, fato que talvez tenha dado causa, mais de cem anos depois, à própria surpresa de se constatar a existência de um “negro de primeira linha” no Século 21. Conforme Florestan Fernandes, com o fim da escravidão os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos escravos, sendo que “o liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva” [21]. Rui Barbosa afirmou que a abolição se convertera “numa ironia atroz”, pois o que a “libertação”, da forma como realizada, traria ao ex-escravo “a liberdade de ser infeliz onde e como queira… [22] ”.
Não é de se espantar a situação do negro na sociedade brasileira atual – seja no trabalho, nas cadeias e nas relações sociais -, resultado da “emancipação” que recebeu de presente há 130 anos atrás; da mesma forma não há de se assustar com a identidade de discurso entre um ministro e um empresário que permite trabalhadores em condições precárias em sua cadeia produtiva, pois seria fruto da propensão a atender os anseios da autoridade. Não será mesmo surpresa para ninguém que os trabalhadores enfim libertos da “infantilização” do Direito e da Justiça do Trabalho perpetuem a miséria e a maltrapilha vida dos negros pelos séculos vindouros.
Os testes de Milgram poderiam ser feitos atualmente no Brasil que poderiam resultar, em relação aos negros e aos trabalhadores, em dados similares: a reprodução diuturna da violência racial ou em relação ao Direito e à Justiça do Trabalho, estando as duas interligadas. A autoridade cria a sociedade de linhas, castas, categorias de pessoas.
Por outro lado, temos a obrigação de sermos otimistas, como na canção de Peter Gabriel, “We do what we’re told (Milgram’s 37)” que alude – com pequeno equívoco – ao percentual de pessoas que se recusam a cumprir a ordem malévola da autoridade. A ideia de Peter Gabriel é que, gerando a consciência do funcionamento do paradigma da obediência à autoridade de Milgram, sejamos e atuemos como a minoria que desobedece ao perceber os males que está cometendo e passamos a não mais repetir a violência em nome da autoridade. O ministro Barroso tem a chance de, agora, percebendo a violência cometida, não mais repeti-la.
(*) Professor da UFRJ e procurador do trabalho no RJ
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NOTAS:
[3] COLLIN, Catherine et al. O livro da psicologia. São Paulo: Globo, 2012, p.248.
[4] MILGRAM, Stanley. Some Conditions of Obedience and Disobedience to Authority. Human Relations 1965 18:57, disponível em http://psyc604.stasson.org/Milgram2.pdf
[5] COLLIN, Catherine et al. O livro da psicologia. São Paulo: Globo, 2012, p.251.
[7] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/05/4c12ea9e44c05e1f766230c0115d3e14.pdf, http://dares.travail-emploi.gouv.fr/dares-etudes-et-statistiques/etudes-et-syntheses/dares-analyses-dares-indicateurs-dares-resultats/article/le-taux-de-rotation-de-la-main-d-oeuvre-poursuit-sa-hausse-au-1er-trimestre. Há de se ressaltar que a taxa de rotatividade da mão de obra no Brasil gira em torno de 64%, enquanto que na França está em torno de 17%.
http://www.dieese.org.br/notaaimprensa/2014/numerosRotatividadeBrasil.pdf; http://dares.travail-emploi.gouv.fr/dares-etudes-et-statistiques/etudes-et-syntheses/dares-analyses-dares-indicateurs-dares-resultats/article/le-taux-de-rotation-de-la-main-d-oeuvre-poursuit-sa-hausse-au-1er-trimestre. O desemprego e a rotatividade fazem aumentar a conflituosidade judicial, e não o reverso, cf. amplo estudo europeu: http://www.antiprecarite.fr/attachments/article/181/CPH%20freins%20%C3%A0%20l’embauche%20_%20article%20juillet%202014.pdf
[8] http://www.justice.gouv.fr/statistiques.html#statistique-judiciaire
[9] https://www.destatis.de/EN/FactsFigures/SocietyState/Justice/Tables_/SocialCourts.html
[10] http://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Temas/Estadistica-Judicial/Estadistica-por-temas/Actividad-de-los-organos-judiciales/Asuntos-Judiciales-Sociales/, acesso em 9/06/17.
[11] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,citi-vendera-operacoes-de-varejo-no-brasil–na-argentina-e-na-colombia,10000017180; http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/06/1784780-venda-do-citi-sai-ate-setembro-diz-ceo-no-brasil.shtml
[12] “I think this is more about Citi’s strategy of slimming down its consumer banking arm than it is about any intrinsic market weaknesses in Argentina, Brazil or Colombia, Cf. https://www.nytimes.com/2016/02/20/business/dealbook/citigroup-to-sell-retail-units-in-argentina-brazil-and-colombia.html?_r=0
[18] http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24293188
[21] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (o legado da “raça branca”). 5ª edição. São Paulo: Globo, 2008, p. 29.
[22] Idem, p. 30.