A caracterização como “vagabundos” daqueles que resolvem cruzar os braços e protestar por direitos não é nova e nem foi inventada por políticos brasileiros.

“Vagabundo” não é quem faz greve. É quem se nega a estudar História*

Leonardo Sakamoto**

Direitos que você tem hoje, como aposentadoria, férias, 13º salário, limite de jornada de trabalho, descanso aos finais de semana, piso de remuneração, proibição do trabalho infantil, licença maternidade não foram concessões vindas do céu. Mas custaram o suor e o sangue de muita gente através de diálogos e debates, demandas e reivindicações, paralisações e greves, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

É função de empregadores e políticos fazerem parecer que foram eles que, generosamente, ofereceram direitos. E função da História contada pelos vencedores registrar isso como fato inquestionável, retirando do povo, a massa muitas vezes amorfa e sem rosto, o registro dessas vitórias.

Desde que as Reformas da Previdência e Trabalhista foram apresentadas, o governo federal teve que ceder em alguns pontos devido à pressão social. Foram poucos, sem dúvida. Mas isso beneficiou desde o trabalhador assalariado que vê a vida passar do sofá da sala, chamando de “comunistas” todos que reclamam das reformas, até aqueles que resolvem ir à luta. Sim, ironicamente muita gente se beneficia do resultado obtido por aqueles que costumava xingar.

Não é de hoje que, na tentativa de menosprezar uma reivindicação de trabalhadores, nega-se a eles exatamente essa identificação. Afirma-se que quem entra em greve não é trabalhador porque, naquele momento, não está trabalhando. Aplicando essa lógica absurda a outros exemplos, quem viajar para fora do Brasil deixaria de ser brasileiro.

Ou seja, nessa lógica, o trabalhador só merece ser tratado como produtivo à sociedade se estiver sempre trabalhando. Caso exerça seu direito, previsto na Constituição, de parar para protestar, torna-se o oposto – que, numa concepção distorcida significa preguiça e indolência.

É paradigmático, portanto, que o prefeito de São Paulo, João Dória, tenha chamado grevistas de “vagabundos” na manhã de sexta (28). Ele, que defende as reformas da Previdência e trabalhista, tem criticado duramente o movimento. Afirmou que, “neste confronto, só a população que trabalha, que é honesta, é quem perde”.

Ele tem todo o direito a ter sua opinião e a expressa-la quando quiser. Mas também temos a liberdade de lembrar que, durante muito tempo, a polícia exigiu a carteira de trabalho para definir se alguém era “uma pessoa de bem” por aqui.

A caracterização como “vagabundos” daqueles que resolvem cruzar os braços e protestar por direitos não é nova e nem foi inventada por políticos brasileiros.

Quem visita a cidade de Chicago, nos Estados Unidos, encontra uma frase gravada em um monumento: “Chegará o dia em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as vozes que vocês estrangularam hoje”. Ele foi erguido em memória de uma greve que começou no dia Primeiro de Maio de 1886, exigindo a redução da jornada de trabalho para oito horas por dia, tocada por trabalhadores que foram chamados de vagabundos. Resultado: a polícia abriu fogo contra a multidão, mas a data foi escolhida para ser um dia de luta em todo o mundo por condições melhores de vida. Menos nos Estados Unidos, em que o Labor Day é na primeira segunda de setembro.

Só o trabalho gera riqueza. E o silêncio de trabalhadores, que se reconhecem como tais, percebem a injustiça que, muitas vezes, recai sobre eles e resolvem cruzar os braços, não apenas aumentou salários ou criou aposentadorias, mas já ajudou a derrubar regimes, a democratizar países, a mudar o rumo da história.

Mahatma Gandhi pediu para que trabalhadores cruzassem os braços e entrassem em greve, não por melhores salários, mas pela independência da Índia junto ao Reino Unido. Martin Luther King fez o mesmo pelo direitos civis de mulheres e homens negros diante do racismo institucionalizado nos EUA. É dele a frase: “a greve, no fundo, é a linguagem dos que não são ouvidos”.

Nelson Mandela foi chamado de vagabundo por querer que a África do Sul parasse contra o apartheid. A paralisação das operárias russas contra a fome e contra a participação do país na Primeira Guerra precipitou os acontecimentos que desencadearam a queda do regime imperial em 1917. Esse povo não protestou apenas em finais de semana e feriados, ou seja, em seu “tempo livre”.

Quero comparar essas figuras citadas com nossos líderes nacionais? Nunca, seria um crime histórico. O que discute-se aqui é até que ponto somos capazes de furar a programação que nos foi incutida, de criminalizar quem cruza os braços. Você pode discordar da greve. Mas não julgue alguém que concorda sem subsídios para tanto.

Manifestações que questionam a desigualdade e a injustiça social, mais do que a política em si, tendem a ser reprimidas pela força pública. São vistas como subversivas. As “ordeiras”, que não mexem com a estrutura econômica e social do país, não. Têm direito até a catracas de metrô liberadas.

Tudo isso acaba por criar uma “nova língua”. Paulo Mathias, prefeito regional de Pinheiros, município de São Paulo, gravou um vídeo mostrando que trabalhadores iriam dormir nas dependências do prédio para trabalharem nesta sexta de greve geral. Nele, diante de trabalhadores visivelmente constrangidos, afirmou: “Sou a favor do direito à greve, mas não em dia de trabalho.” Foi parabenizado pelo chefe.

O que ele disse é equivalente a pedir x-burguer sem queijo ou um cachorro-quente sem salsicha.

Temos diversas formas de silêncio. O poder não está no silêncio das bocas fechadas que aceitam as coisas como elas são porque acreditam que nada pode mudar e que ficam felizes se ganharam uma TV do sindicato pelego no feriado.

Mas dos braços parados que se negam a produzir riqueza sem que um diálogo aberto e franco com os empregadores seja estabelecido. Trabalhadores são fortes. Pena que se esquecem disso.

(*) Título original
(**)Professor, jornalista e doutor em Ciência Política

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