É impossível não ser sínico ou sádico quando se admite como justo e correto a possibilidade da legitimação definitiva da terceirização como um marco legal da dignidade ao trabalho. O que temos como referência desses marcos na legislação brasileira são os limites e a dimensão pactuada entre os poderes do Estado para garantir a impunidade de quem explora, adoece, mutila e mata trabalhadores.

Terceirização (PL 4.302/98): legitimação regulamentada do ilícito e do precário nas relações de trabalho¹

José Reginaldo Inácio*
Ricardo Lara**

Leilões serão anunciados. Não de escravos! É preciso e legítimo conferir dignidade aos “senhores de hoje”. Ora, a escravidão, com a indignidade, a degradação civilizatória e a violação de direitos humanos, não havia sido prenunciado o seu fim desde a Lei Eusébio de Queiroz, que, em 1850, proibia o tráfico negreiro e culminaria na Lei Áurea, a “Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, que declara extinta a escravidão no Brasil”? Ao raciocínio em curso, como aqui é tratado da garantia de legitimidade para a “regulamentação modernizadora” da terceirização (PL 4302/98), os mercadores novamente se mostram, afinal legalmente estavam proibidos de atuação regular desde 1850.

Excertos do pensamento patronal acerca da terceirização
As elites econômicas e empresariais se dizem preocupadas com os trabalhadores marginalizados, precarizados, os já terceirizados, portanto, objetivam valorizá-los. Se isso fosse verdade, os patrões estariam negando o que 91% dos empresários disseram na pesquisa² elaborada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, quando manifestaram que o esperado com a terceirização é, de fato, a redução do custo.

Dos empresários participantes dessa pesquisa, 58% deles citaram que a qualidade esperada como resultado do serviço ou produto, quando optam pela terceirização, é menor e passa a ser um problema. Outra preocupação do empresariado: quanto à responsabilidade da contratante, se solidária ou subsidiária. Esta questão é estranhamente externada por Emerson Casali, então gerente executivo de Relações do Trabalho e Desenvolvimento Associativo da CNI:

A garantia, para o trabalhador, é exatamente a mesma nos dois casos. A diferença é que, na responsabilidade subsidiária, defendida pela CNI, a empresa contratada tem de ser acionada na Justiça primeiro. Caso não seja localizada ou não tenha condições suficientes, a contratante é executada. [...] Nenhuma empresa vai querer contratar uma terceirizada, mesmo sabendo da idoneidade dela e monitorando se as obrigações trabalhistas estão sendo respeitadas, se o trabalhador puder simplesmente passar por cima da terceirizada e acionar diretamente a contratante na Justiça.

Ora, no mínimo é estranha a opinião defendida por esse gerente. Se se pressupõe que as empresas contratadas são idôneas e cumpridoras de suas obrigações, não há motivo algum para resistir à responsabilidade solidária. Se isso é correto, assim, na pior das hipóteses – admitindo-se vitoriosa a imposição nefasta da terceirização –, podemos até garantir que nem o melhor advogado trabalhista, usando de sua competência, juízo ou razão, encontrará motivos ou bases legais para orientar qualquer trabalhador a acionar a Justiça. Já, do ponto de vista dos trabalhadores, a simples negativa de admitir essa (in)responsabilidade já se pressupõe o risco de prejuízos em qualquer contrato que se faça. Afinal, no mínimo, algum direito está sendo precarizado. A simples falta da obrigação gera um passivo que dificilmente se recupera. Ameniza-se a injustiça, jamais se faz justiça! Fatalmente os direitos do trabalhador já estão prejudicados, tanto pela procrastinação (tempo) quanto pelo valor (material e moral/dignidade) que se perde.

O “risco jurídico”, outro aspecto muito citado entre os patrões e, ao mesmo tempo, bastante comentado entre os assessores jurídicos do patronato, dos senhores do capital, autossuficientes financeiramente – com a hipótese piorada, ainda mais precária de se terceirizar, admitindo-se a adoção da responsabilidade subsidiária –, é transferido para a parte hipossuficiente, o trabalhador, exatamente no pior momento de suas carências e adversidades, ampliando sua condição de agonia econômica e social, impondo-lhe níveis mais rebaixados de degradação e desespero; acentuando drasticamente a dimensão de injustiça e desigualdade social na qual se encontra acometido.

É impossível não ser sínico ou sádico quando se admite como justo e correto a possibilidade da legitimação definitiva da terceirização como um marco legal da dignidade ao trabalho. O que temos como referência desses marcos na legislação brasileira são os limites e a dimensão pactuada entre os poderes do Estado para garantir a impunidade de quem explora, adoece, mutila e mata trabalhadores. Ademais, já existe lei. Já existem condições de trabalho e de direitos reguladas. O que não existe é a efetividade das empresas contratantes e contratadas em cumprir com as condições amplamente estabelecidas! Provocaram a desordem, intensificaram a precarização, a degradação, e agora querem tornar legal as suas práticas? Quando não mais cumprirem com esse nível regulamentado de terceirização, precarização ou de degradação, com esse novo patamar de rebaixamento social e do trabalho que insistem em instituir como legal, e piorarem ainda mais o que hoje já é precário, novamente vão querer readequar uma forma ou dimensão mais intensa e letal de deterioração aos direitos e condições de trabalho às classes trabalhadoras? De repente, tudo aquilo prenunciado por diversos sindicalistas, pesquisadores, juízes, procuradores etc., se revela como uma nova ordem de deterioração do mundo do trabalho. Daí o que farão os patrões e seus representantes no Congresso Nacional? Se dizem que a terceirização é irreversível e as condições dela derivadas, tendencialmente, fugir ao controle, dirão que a precarização é irreversível também? Vão querer regulamentar a precarização? E se falhar também a precarização regulamentada e a doença, a mutilação e a morte no trabalho ascenderem a condições incontroláveis, vão querer regulamentar a extinção gradativa das classes trabalhadoras enquanto seres humanos? 

A exploração das formas precárias, degradadas, de trabalho tem que ser maximizada em seu nível extremo de descarte para ampliar de modo perene a margem (ganância) de lucro (da concentração de riqueza) e da desigualdade social, estabelecendo uma distância imensurável, praticamente intransponível entre os ricos, os donos dos poderes (executivo, legislativo e judiciário), e os pobres, os miseráveis, que pertencerão a uma nova, porém retrógrada, ultrapassada, categoria de trabalhadores sem direitos nem condições dignas de trabalho: os terceirizados.

Quem serão no futuro os estudantes de hoje? Terceirizados! Os servidores públicos, juízes, professores, procuradores, políticos etc.? Terceirizados! E os sindicalistas? Terceirizados!?

Quando se fala de trabalho terceiro já está se dizendo que não se espera condições de direitos e de trabalho de primeira. O que é de primeira pressupõe prioridade para todas as condições, incorpora possibilidades mais realistas de que a dignidade no trabalho seja presenciada. Só se admite no espaço de trabalho e a quem trabalha, ambientes e condições ao exercício profissional que sejam de primeira. A quem faz uso do trabalho terceirizado não há prioridade a direitos emancipatórios à condição humana, porque essa prioridade seria a negação daquilo que, de fato, a classe dominante busca e quer com a disseminação e “banalização do mal”³, enfim, regulado para todas as formas de terceirização.

O que fazer? Uma resposta convincente seria muita pretensão. Apenas alertamos que o pacto entre classes nunca existiu. O espaço da exploração do homem pelo próprio homem não cessa onde a acumulação dá margem à formulação das leis que sustentam o espectro do consumo e do lucro como base social em detrimento da cidadania e da emancipação humana.

A terceirização sustenta essa lógica. Não há interesse, tampouco possibilidade de conciliações entre classes. Isso, no capitalismo, faz arrefecer as mobilizações e a força das classes trabalhadoras no enfrentamento da “questão social” e das contradições inerentes a esse sistema.

(*) Sindicalista, secretário de Educação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria – CNTI, diretor da Nova Central. Doutor em Serviço Social, bolsista de Pós-doutorado do CNPq pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

(**) Supervisor do pós-doutorado. Professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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NOTAS
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Este artigo se trata de um recorte de um ensaio a ser originalmente publicado no Livro Avesso do Trabalho IV, em 2017: Terceirização: legitimação regulamentada e resistência.

² Pesquisa realizada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) revelou que 91% das indústrias do País consideram a contratação de serviços terceirizados uma alternativa importante para reduzir custos. Participaram da pesquisa 1.443 empresas, sendo 798 pequenas, 433 médias e 212 grandes, entre os dias 30 de setembro e 20 de outubro de 2008. Disponível em: www2.uol.com.br/infopessoal/.../_HOME_OUTRAS_1579489.shtml. Acesso: 28/12/2015).

³ Dejours, quando diz a respeito das articulações dos estágios da banalização do mal, lembra-nos de algumas estratégias empresariais para disseminar a precarização das condições de trabalho, as injustiças sociais como normalidade entre os trabalhadores. Nesse sentido destaca que: “Para que o discurso por um seja o mesmo para todos, é preciso que ele tenha adquirido o status inequívoco de discurso ou opinião dominantes. Isso é o que faz a estratégia da distorção comunicacional, cujo papel é decisivo, diga-se mais uma vez, na banalização do mal. A racionalização economicista é um dispositivo sem o qual o medo das pessoas de bem ante as ameaças da adversidade social gerada (a precarização) não poderia alimentar as estratégias defensivas que vão dar na banalização do mal”. (DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007, p. 125). 

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