O negociado sobre o legislado: Suprema injustiça
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- Categoria: Agência DIAP
José Eymard Loguercio*
A decisão do Tribunal Superior do Trabalho, na data de 26 de setembro de 2016[1], pode ser considerada histórica. No contexto de um debate, que joga lenha ao tema do negociado sobre o legislado, o TST reafirma, por ampla maioria (22 votos a 4), que a lei e a Constituição são os limites, e não o inverso! A decisão reveste-se de maior simbolismo se verificarmos tratar-se de um dos principais temas da chamada “reforma trabalhista”.
No programa “uma ponte para o futuro”, apresentado pelo Governo Temer, a principal referência à questão trabalhista veio na forma da prevalência dos acordos e convenções coletivas sobre a lei. Algo que se tem popularizado como a prevalência do acordado sobre o legislado.
O tema não é novo! Na década de 90, início dos anos 2000, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, houve o encaminhamento do PL 5483/2001, alterando o artigo 618 da CLT para dar prevalência aos acordos e convenções coletivas de trabalho. O projeto chegou a ser aprovado pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal sob o número PLC 134/2001. Em 08/05/2003 o Presidente Lula solicitou a retirada do projeto, que foi arquivado somente 11 meses depois, em junho de 2004.
Depois disso vários projetos de iniciativa de parlamentares foram apresentados, com idêntico conteúdo, sem ambiente para aprovação. Mais recentemente, quando da discussão do projeto do PPE (programa de proteção ao emprego), houve a tentativa de inclusão de emenda parlamentar acrescentando artigo nessa linha. Ao final, foi retirado e não aprovado.
No âmbito judicial essa matéria igualmente não é nova. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) vem sinalizando hipóteses em que, nos casos especificados, se admite uma maior “flexibilidade” nos acordos ou convenções coletivas, desde que incluídas contrapartidas explícitas e compensatórias quanto ao que fora negociado. Como exemplo, os casos das horas in itinere (consideradas como tempo a disposição do empregador por expressa previsão do artigo 58 da CLT). De outro lado, o TST tem negado a possibilidade da simples supressão de direitos, pela via da negociação, bem como, em exames concretos, o que seria uma “falsa” concessão de vantagens travestida na pura e simples retirada de um direito assegurado em lei.
O STF, por seu turno, vinha se manifestando pela ausência de matéria constitucional nos casos que até lá chegaram, na via de recursos empresariais que contestavam as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho.
No ano de 2015, em surpreendente mudança de comportamento, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE-590.415, caso que ficou conhecido como PDI-BESC. A Justiça do Trabalho não reconhecera a validade da cláusula de acordo coletivo do BESC, que previa uma quitação geral sobre indenização recebida em programa de demissão incentivada (PDI) instituído pelo Banco e incluído em acordo coletivo de trabalho. O Besc, agora sucedido pelo Banco do Brasil S/A, recorreu ao STF. O Supremo, seguindo voto do Ministro Barroso, reformou a decisão para reconhecer a validade da cláusula. A decisão, na ocasião, jogou mais lenha nessa fogueira de ao sinalizar uma possível mudança sobre as decisões da Justiça do Trabalho acerca das limitações impostas às negociações coletivas.
Neste precedente, embora seja fato que o Ministro Barroso tenha feito várias incursões pelo tema da autonomia privada coletiva, é igualmente certo que deixou explícito e registrado que, no caso concreto, estavam presentes alguns elementos decisivos, tais como: (a) cláusula de quitação em programa de demissão incentivada – portanto se aplicava fora da vigência da contratualidade; (b) ausência de lei concedendo a indenização pela adesão ao programa de demissão incentivada; (c) comprovação de ampla participação dos interessados nas assembleias – e comprovação da efetiva representatividade das entidades sindicais; (d) dupla adesão – coletiva e individual – a adesão ao programa era voluntária e dependia de adesão individual; (e) exame das condições reais da categoria – assembleias realizadas e independentes; (f) vantagem compensatória recebida e devidamente comprovada.
Vê-se que a decisão, embora estabeleça um novo patamar nesta discussão (pela reforma que impôs à decisão proferida pelo TST), não autoriza falar de prevalência do acordo coletivo sobre a lei. Trata-se de decisão proferida a partir de um caso concreto com dimensões muito especificadas no tracejo do voto do Relator. Não pode ser exportada, para outros casos, sem que se estabeleçam os mesmos e idênticos parâmetros.
Ainda assim, naquele caso, o Supremo não conseguiu examinar toda a complexidade que envolve o tema. Estou seguro de que possa revisitá-lo, evitando o uso equivocado da mensagem de prevalência dos acordos sobre a lei. Nota-se, na decisão, a ausência de diálogo com a realidade do sistema sindical brasileiro que mantém déficits de garantias, valendo citar, dentre muitos, a ausência de legislação que proíba as práticas antissindicais; de obrigatoriedade ao direito de informação, na negociação coletiva; dispensas imotivadas, que decorrem de meio de pressão contra a organização dos trabalhadores, bem como, a interferência em assembleias sindicais e o imediato ou até mesmo preventivo ajuizamento de interditos proibitórios dificultando ou impedindo a realização de greves que obtenham resultados positivos para a celebração dos acordos ou convenções de diversas categorias. Em resumo, somos carentes de plena liberdade sindical, entendida essa no contexto das garantias para o seu exercício individual e coletivo. Ou seja, a outra face do exercício da autonomia privada coletiva não é a autonomia individual. A outra face é a liberdade sindical e as reais condições de construção da proteção que se dá ao trabalhador pela negociação coletiva.
Mas a tentativa de pautar essa matéria, não parou aí.
No dia 13 de setembro de 2016, o Ministro Teori Zavascki surpreende novamente ao decidir, monocraticamente (isoladamente), um caso cuja mensagem pública sinaliza a prevalência do acordado sobre o legislado.
Trata-se do RE 895.759. Neste caso o TST havia considerado ilegal (com base no artigo 58, § 1º da CLT) a supressão das chamadas horas in itinere. Invocando o precedente de 2015 o Ministro Teori decidiu aplicá-lo sob o fundamento de que houve registro, na decisão, de que a supressão da parcela foi compensada com outros itens específicos de vantagens compensatórias concedidas[2].
A decisão é, para usar expressão do Ministro Barroso, mais um ponto fora da curva (talvez, nesse caso, seja a curva toda fora do ponto). Primeiro, tratando-se de decisão monocrática (e não do colegiado) sobre matéria que, em princípio, não guarda a mesma dimensão daquela do PDI-BESC. É que, naquela, os elementos eram bem mais densos em relação à construção do acordo. Segundo porque, neste caso, o TST considerou que houve supressão de um direito previsto em lei (do pagamento das horas in itinere).
A concessão de vantagens compensatórias especificadas, assim, parece converter-se na chave da questão quando se trata de inserir cláusulas restritivas ou supressivas de Direitos pela via da negociação coletiva. O precedente, ainda assim, é extremamente perigoso para as garantias e os direitos dos trabalhadores, na linha de toda a construção secular do Direito do Trabalho, seus valores, princípios e regras. O que e como se caracteriza uma “vantagem”? Bastará que as partes declarem que houve vantagem? De outro lado, a vantagem, isoladamente, também não pode servir de parâmetro para a supressão de direitos. Nem o legislador chegou a tanto[3]
Uma semana depois da decisão do Ministro Teori, o tema está na pauta do Tribunal Superior do Trabalho, com forte pressão para que o Tribunal recuasse de suas posições em favor da aceitação mais alargada do negociado sobre o legislado. Por ampla maioria, felizmente, o TST cumpriu seu papel ao sinalizar que o Direito do Trabalho, no seu papel de contenção, não está morto!
O tema, no entanto, parece tirado da cartola no momento em que o debate aparece na agenda política e no cenário de crise econômica. A introdução de mecanismo como esse pode significar, simplesmente, a destruição da CLT e das garantias fundamentais dos trabalhadores. Sem debates. Sem aprofundamento. Sem analisar as consequências de se introduzir uma prevalência que não valoriza a negociação coletiva, como anunciado. Coloca, isso, sim, sobre os ombros dos trabalhadores e de seus sindicatos, a responsabilidade de rebaixar e retirar direitos pela simples necessidade de manter postos de trabalho (seria essa uma vantagem compensatória?).
O discurso da valorização da negociação coletiva vem, portanto, sendo indevidamente apropriado por setores que não querem efetivamente essa valorização. Querem, ao contrário, surfando na onda da flexibilização e desregulação -- que volta com força total por aqui e em outros cantos do mundo--, simplesmente fragilizar os parcos direitos trabalhistas conquistados a duras penas ao longo do Século XX, após muitas batalhas, confrontos e lutas sindicais. O que está em jogo vai muito além do verniz da “modernização” onde se esconde um Brasil com trabalho indecente, trabalho infantil, situações análogas a de escravo, convivendo com setores mais organizados e melhor preparados para a negociação. Mas, a prevalência do negociado sobre o legislado põe todos no mesmo buraco da história.
A chamada autonomia coletiva decorre de uma das mais importantes funções do sindicato. Isso é fato! A valorização da negociação coletiva é condição do exercício da democracia. As normas coletivas, junto com a lei, compõem um sistema de direitos e de proteção para os trabalhadores[4]. No entanto, só se pode falar em autonomia coletiva com a outra face da mesma moeda: a liberdade sindical. Ou seja, para que o sindicato possa efetivamente negociar, há que se estabelecer um sistema de proteção e garantias que, em muitos países, denomina-se “legislação de sustento”. São garantias para sindicalistas e trabalhadores exercerem a necessária pressão sobre o setor patronal de modo a não estar, sempre, na dependência da aceitação de qualquer acordo pelo simples fato de manter os empregados de quem já está empregado. Ainda assim, não se há de considerar natural, normal, regular, prevalecente que a negociação coletiva sirva para reduzir ou retirar direitos! Não nasceu para isso. Nem o Direito do Trabalho!
(*) José Eymard Loguercio é Advogado sócio de LBS Sociedade de Advogados e membro do corpo técnico do Diap.
[1] Processo nº 205900-57-2007-5-09-0325 – Usina Santa Terezinha x Sidney.
[2] Aqui seria importante desenvolver esse ponto. Mas para não me alongar, fica o registro de que tecnicamente o Supremo não poderia examinar fatos e provas de modo a concluir, por esse caminho, contra as decisões proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho. O que se considera vantagem compensatória? Quais os critérios para aferir essa vantagem? Algo que já está na lei, que nada acresce, pode, ainda assim, ser considerado vantagem? Cremos que não!
[3]O único dispositivo da Constituição que poderia servir de parâmetro para “redução” de direitos é o inciso VI do artigo 7º, ao tratar da irredutibilidade salarial, salvo “negociação coletiva”. Tal dispositivo, no entanto, não autoriza “reduzir direitos” pela via da negociação. Vale lembrar, com relação à irredutibilidade salarial, que o artigo 503 da CLT[3] autorizava a redução salarial pelo empregador em caso de força maior (sem negociação coletiva). Depois, a Lei nº 4.923/65, em seu artigo 2º, autorizou igualmente a redução temporária de salários, nas condições que especificou, dentre elas a celebração de acordo coletivo ou fixação em sentença normativa. Mais recentemente a Lei nº 13.189/2015 também estabelece condições e diretrizes para a implantação do chamado Programa de Proteção ao Emprego, de natureza transitória, a justificar a redução salarial mediante negociação coletiva e outras condições ali estabelecidas. A evolução normativa do tema revela que a Constituição de 1988 ampliou a proteção do trabalhador ao assegurar como hipótese da nomogênese para eventual redução salarial, a prévia negociação coletiva (impedindo as reduções por intermédio de contratos individuais). Em nenhum momento se pode extrair dessa exceção, a regra de que a “redução salarial” pode ocorrer em qualquer hipótese, condição ou circunstância. Menos ainda que a exceção se transforme em regra de modo a atingir “outros direitos”. Aqui não vale a máxima de que quem pode o mais, pode o menos. Nem o legislador foi a tanto!!! Cuidou o legislador de traçar outras restrições, igualmente importantes a serem seguidas pelas entidades sindicais de trabalhadores e empregadores ou pelas empresas nas negociações específicas.
[4] De dimensão constitucional – o caput do artigo 7º quando diz: direitos “além de outros que visem a melhoria da condição social” e internacional (nos inúmeros compromissos assumidos nos pactos e convênios).